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GENEALOGIA DA FAMÍLIA COELHO

 

  VIDAS QUE PASSAM...

 

INTRODUÇÃO.

 

Dificílimo restaurar através da memória histórica, a continuidade genealógica, passando por esses conflitivos e interrogados hiatos. Fica assim, truncada a possibilidade de um “continuum” de descendências, organizarmos uma árvore a partir de um tronco único. Sabemos que lidamos com fatores exponenciais onde as polaridades de nosso campo de eventos se afastam em progressão geométrica. Sabemos por outro lado que as nossas pesquisas também evoluem indefinidamente para o encontro desses limites rumo a um universo inesgotável de possibilidades.

O importante é não esmorecermos frente aos recônditos mistérios desses horizontes porque cada nome que encontrarmos estaremos não só ampliando nossa árvore mas, também, estaremos dando vida ao personagem esquecido pelo tempo. Cada um viverá eternizado pela nossa lembrança e teremos assim a certeza de que amanhã também viveremos na memória histórica de nossas famílias.

Viver, terá sido então, valido a pena! Infelizes aqueles que sequer deixam um nome para a posteridade. Felizes os que buscam o resgate de seus entes queridos e não os deixam perecer duas vezes: no momento da partida e no próprio esquecimento. Resgatemos, pois, seus nomes. Contemos um pouco de suas histórias, de seus momentos de alegria e tristeza, fracassos e sucessos, lutas e sofrimentos. Não o deixemos à mercê única e exclusivamente de uma lápide fria.

Não o matemos duas vezes. É tão difícil essa arte de viver para que percamos os vínculos com o nosso passado! É tão efêmera essa nossa quimera vida que não nos apraz a ideia de partir sem ter a certeza de que um dia seremos lembrados! Certamente, um dia encontraremos nossos próprios traços e fragmentos do que fomos.

                                                             Prof. Gilberto da Costa Ferreira.

 

PREFÁCIO.

 

Em 1972, quando estava para nascer o meu primeiro filho, Frederico, eu morava à Rua Baronesa, Praça Seca - Jacarepaguá, em apartamento de propriedade do Dr. Salim Bechara, um advogado, de família judia bem tradicional e importante, com o qual mantinha ótima relação de amizade. Quando Salim soube que eu seria pai perguntou-me se seria menina ou menino. Disse-lhe que gostaria que fosse uma menina. Salim observou que os judeus sempre desejam que seus primogênitos sejam homens pois assim preservam-se os nomes de famílias através dos tempos. Nunca tinha pensado nisso e a partir daquele momento nasceu ainda que de forma pouco interessada, a curiosidade sobre essa questão.

Durante muito tempo, por razões que não sei explicar, essa curiosidade ficou adormecida nos arquivos da minha mente e só veio a despertar há alguns anos atrás quando estava num Shopping e vi num quiosque, que tratava de genealogia e origem dos nomes, tudo sobre o nome Fernanda, nome da minha primeira neta e afilhada. A curiosidade aumentou e a partir dali ficou fervilhando na minha cabeça o desejo de saber o que queria dizer o meu nome, o nome dos meus filhos, esposa e parentes e, principalmente, o nome de família - Coelho. Queria saber mais: de onde vieram os Coelhos ascendentes de meu pai e avô.

Entretanto, o certificado, digamos assim, com pesquisa sobre a história da família e respectivo brasão, tinha custo razoável naquele momento e assim adiei por um bom tempo o sonho de ver revelada parte dessa curiosidade. Com o passar do tempo, uma estranha força nos impele a essa busca. Mais cedo ou mais tarde, de alguma forma, a nossa mente passará a nos cobrar a busca dos nossos laços de família, o nosso gene.  Vem a saudade da vó, o desejo de saber mais sobre a sua origem; como se vivia naquele tempo, as histórias que ela contava, sua personalidade. Desejo de saber com quem se parece o seu neto: com o seu avô? Mas se você não conheceu o seu avô, como saber? São essas e outras infindáveis indagações que ficam martelando as nossas mentes e a nos cobrar respostas.

Não se teve na nossa família, como Cabral, um Pero Vaz de Caminha -  "escrivão da frota" - a nos relatar a odisseia dos nossos ancestrais, mas ainda há tempo de ir-se em busca do elo perdido dessa "corrente". Pretendo, com a colaboração de todos os meus parentes e amigos, pesquisas na net, em cartórios, igrejas e arquivos municipais, etc., não só levantar a origem dos Coelhos da nossa família, como também as raízes, até onde possível, daqueles que ajudaram a formar essa "Aldeia" onde se encontram, além dos Coelho, os Silva, os Santos, os Fernandes, os Costa, os Froes, os Silveira, os Gusmão, os Lessa, os Cantuária, os Muniz, entre outros. 

O desejo é que um dia, lá no futuro da existência dos nossos netos e descendentes, exista à disposição deles um livro ou um "Álbum de Família" que os levem a uma viagem de encontro ao nosso passado e os estimulem a também deixar os seus rastros, os seus registros, como um cometa nessa efêmera passagem pela vida. 

 

                                      Cleber Coelho.

 

COELHOS DE PORTUGAL.

 

Rodeia as origens dessa família toda uma série de lendas que a credulidade de inúmeros genealogistas e a passagem dos séculos tornaram difíceis de desfazer. A verdade, porém, é que elas nasceram da fértil imaginação de João Soares Coelho, trovador (aquele que na Idade Média compunha e cantava composições poéticas ou divulgava cantando) e vassalo (aquele que era súdito de um soberano e dele se tornava dependente pela fé e fidelidade) de D. Afonso III, tendo como objetivo se engrandecer e a seu passado.

João Soares Coelho, era, por via bastarda, um dos filhos de D. Egas Moniz de Riba Douro. Pelo texto, a família "Coelho” não seria originariamente de cristão-novo (judeu que para não ser queimado vivo mudava de nome), mas de família existente ao fato histórico da Inquisição em Portugal e teria descendência das famílias Soares e Moniz.

"Ora, D. Afonso III, segundo a Enciclopédia Mérito, viveu entre 1210 e 1247. Segundo a mesma enciclopédia, a Inquisição Espanhola se iniciou em 1480 pelos reis católicos Fernando e Isabel, sendo que os condenados eram queimados vivos na presença do rei, das autoridades e da população. Perseguidos na Espanha os judeus procuraram refúgio em Portugal, onde não havia inquisição. Assim fica claro, portanto, que 240 anos antes de iniciar a repressão violenta aos judeus, em 1480, existiu João Soares Coelho. E, se assim for, toda a “coelhada”, são parentes entre si, pelo menos na origem. Descendem os Coelhos de D. Soeiro Viegas Coelho que se diz ser o primeiro do apelido por tomar a terra de Conejo (coelho em espanhol), se bem que alguns autores afirmem que seu pai já tivera este apelido, tirado da Quinta da Coelha. Pertencia a linhagem dos de Riba Douro, pois descendia de D. Egas Moniz.”. João Rodrigues de Sá, senhor de Matosinhos, deixou os seguintes versos relativos aos Coelhos:

 

                                    “Em campo douro hum lyão                                      

De muy branca acatadura,

Coelhos por bordadura

Dos Coelhos se dirão

Armas sem outra mixtura

Coelho tal perfeyção

Desforço & Dopynyão

Sostem no que começarem,

Que coração lhes tyrarem

 Non lhes tyra o coração”.

 

Traduzindo:

 

Tratando da família e o seu brasão (que tem um lyão (leão) e em sua borda figuras de coelhos), o senhor de Matosinhos verseja dizendo: que em Campo Douro (Riba-Douro), existe uma família em cujo brasão de arma existe um leão de muito branca cobertura com coelhos bordados em seu redor. Diz ainda que os Coelhos não se misturam. Considera-os perfeitos, esforçados e convictos das suas opiniões. Encerrando diz: “Que se lhes tirarem o coração, o coração não lhes tirarão”. 

Era comum naquela época (século 15) que as famílias tradicionais, além dos brasões que identificavam seus membros pelas posses e feitos, recebessem também homenagens em forma de trovas, como a acima, e que faziam alusão às características e personalidade dos seus familiares. “A presença do leão (símbolo da família Coelho) no brasão de armas insinua força, grandeza, coragem e nobreza de condição. Também caracteriza domínio e proteção, condições que deve ter um superior sobre aquele que domina.”

Nos brasões portugueses e espanhóis o leão representa, em muitas casas, aliança com a casa real de Leão (Espanha) ou concessão por ela outorgada. Observação: João Rodrigues de Sá, senhor de Matosinhos, Rei de Armas de Portugal, foi que escreveu em 1509 um livro que tratava dos brasões das famílias portuguesas. O rei Dom Manuel 1, o Venturoso (1495 a 1521), foi quem fez reunir pelo reino de Portugal todos os brasões e insígnias para acabar com o livre arbítrio no uso das armas e concessão de brasões. Depois de concluída a obra, o rei mandou pintar o teto de um palacete, localizado no Paço de Sintra, com os brasões das 72 principais famílias lusas da época, ilustres em honra, história e bens.

 

O BRASÃO DOS COELHO, NO TETO DO PALÁCIO NACIONAL DE SINTRA, EM PORTUGAL.

 

A execução ocorreu entre os anos de 1515 e 1520. Dentre estas 72 famílias estão, por exemplo: os Coelho, os Silva, os Costa, os Souza, os Pereira, os Corte-Real, os Souto-Maior, os Melo, entre outros. No teto desse palacete em Sintra, encontram-se até hoje os brasões dessas 72 famílias. Grandes genealogistas demonstram em seus estudos e pesquisas que já no século XI havia registro e a presença de Coelhos junto a Corte e que estes descendiam diretamente das famílias Moniz e Aragão. Essa é parte mais importante da história dos Coelhos, de Portugal, que rezam dos livros e registros que vão dos séculos XI aos séculos XV.

 

DAS ORIGENS.

Origem dos nossos Coelhos: (Região Norte Fluminense, Litoral e Serrana) - Trajano de Morais -  Macaé - Frade - Rio das Ostras - Cabo Frio - Petrópolis - Teresópolis - Três Rios).

Conta a história que Gonçalo Coelho criou em 1503 uma feitoria (espécie de aldeia) onde hoje está localizada a Praia do Flamengo e de onde partiram em 1504 (Américo Vespúcio) para a região de Cabo Frio onde fundou-se outra feitoria. Em pesquisa genealógica encontrei listas de eleitores com pouco mais de 20 pessoas (entre 1860/1870) daquela, já cidade de Santa Helena de Cabo Frio, onde aparece o nome Jacinto José Coelho. Em eleições, naquela época, só votavam pessoas influentes e que tinham indicação de políticos ou da Família Real.

Acredito que o ramo dos Coelhos da região serrana, aí incluídos os municípios de Teresópolis, Petrópolis e Três Rios, onde existem muitos “Coelhos”, tenha sua origem em Cabo Frio. É possível, também, que tenham partido do Rio de Janeiro para aquelas terras. Uma outra hipótese é que outras famílias de sobrenome Coelho, vindas posteriormente de Portugal ou de suas posses (Açores, Madeira, por exemplo), tenham chegado ao Rio de Janeiro e por algum motivo buscado a região serrana e norte fluminense.

 

A MARAVILHOSA CABO FRIO, PROVÁVEL BERÇO DOS "COELHO".

 

Outra hipótese é a descendência em solo brasileiro da família de Duarte Coelho, governador da Capitania Hereditária de Pernambuco. Duarte Coelho era descendente direto de Nicolau Coelho, um dos principais capitães da frota de Cabral e o primeiro português a pisar em solo brasileiro. Muitos navios negreiros, mesmo depois de proibido o comércio de escravos (1860), aportavam clandestinamente na hoje região de Cabo Frio e Búzios e estabeleciam ali um grande comércio de escravos com os fazendeiros a região. É possível que muitos portugueses e também franceses, participantes desse comércio, tenham resolvido ali se estabelecer por algum motivo. Quem sabe algum Coelho. As fontes são muitas, é preciso muito cuidado para não se chegar aos Coelhos de outras “tocas”.

Da cidade do Rio de Janeiro, a partir da chegada de D. João VI em 1808, partiram também para as regiões de Macaé, Campos, Cachoeira de Macacu e Cabo Frio, muitos portugueses, inclusive degredados, em busca de trabalho, já que na capital não havia muita oportunidade. Assim, partiram para as terras férteis daquelas regiões e também para as margens de grandes rios locais como o Macaé e outros em busca de pesca.

É também provável, deduzo, que os nossos Coelhos tenham chegado ao Rio de Janeiro depois da vinda de D. João VI - 1808 - e então partido em busca de trabalho naquelas regiões. Cartórios de Pessoas Civis, paróquias, cemitérios e arquivos municipais das regiões onde nasceram nossos ascendentes, são fontes importantíssimas para se tentar chegar até aqueles antepassados cujo sangue ainda correm em nossas veias. Uma bela e estimulante empreitada, à qual eu pretendo levar a bom termo.

 

 

NOSSOS COELHOS.

 

"Vovô, o mais antigo".

 

Nome:  Antonio José Coelho (avô por parte de pai).

Data de nascimento: provavelmente entre 1880 e 1886, mas ainda em processo de pesquisas.

Naturalidade: provavelmente do Frade – 5º Distrito de Macaé, Região Serrana do norte do Estado do Rio de Janeiro.

Falecimento: Morreu entre 1945 e 1947, na casa onde morávamos à Rua Clarimundo de Melo, 753 – Quintino Bocaiúva – Rio de Janeiro RJ. Há processamento de pesquisas sobre o ano de seu falecimento.

Origem do Nome: Antonio: Significa “o que está na vanguarda” e indica uma pessoa de força interior e fé inabalável nos seus próprios ideais. Isto lhe permite estar sempre à frente, abrindo caminhos que geralmente levam a resultados positivos para todos.

Memórias: Tenho gravado nos escaninhos da minha memória, desde pequenininho, entre 03 e 05 anos, a imagem de um caixão no centro da sala da casa onde morávamos, em Quintino Bocaiúva, bairro da zona norte do Rio de Janeiro, e dentro dele o meu avô, de rosto magro bem definido, de pele morena clara e cabelos lisos. Pelos relatos dos meus irmãos mais velhos, era o nosso avô Antonio, pai do nosso pai Anésio e cuja ascendência e história estamos buscando para o nosso “Álbum de Família”.

 

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"Vovó, uma saudade".

 

Nome: Idalina Luiza Coelho (avó por parte de pai).

Data do nascimento: provavelmente entre 1880 e 1886. Pesquisas sobre seu nascimento em andamento.

Naturalidade: É possível que seja natural do Frade - 5º Distrito de Macaé ou de Trajano de Morais, municípios da Região Serrana, norte do Rio de Janeiro. Pesquisas a respeito da naturalidade em andamento.

Falecimento: É provável que tenha falecido entre 1930 e 1940, em Trajano de Morais ou Frade. Pesquisas sobre seu falecimento sendo processadas. 

Origem do Nome: Idalina: De origem italiana. Era uma cidade da Itália e que quer dizer “natural de Idália” (Itália).

Memórias: Idalina Luiza Coelho: nossa avó, por parte de pai, era prima da nossa avó, por parte de mãe, Jesuína da Silva Coelho, sobre quem escreveremos quando tratarmos da sua ascendência. Sabemos pouco dela (vó Idalina), provavelmente que seja também do Frade ou de municípios próximos, na Região Serrana de Macaé. Fica a promessa de resgatarmos, até onde for possível, a história dos nossos avós, bisavós e seus ascendentes.

Curiosidades: O nome Macaé é indígena (corruptela de maca-ê) que entre os nativos significa “macaba doce” (coco doce), fruto da palmeira tipo macaíba, abundante na região, ou seja, o nosso tão conhecido “coco de catarro”. O nome Frade, dado ao 5º Distrito de Macaé, teve como  origem o Pico do Frade, imponente rochedo de aproximadamente 1.480 m. de altura, localizado naquele distrito e que se assemelha, segundo seus habitantes, a imagem de um frade. Frade é uma região muito procurada por ser propícia a prática de esportes radicais nas correntezas dos seus rios, quedas d'águas e montanhas (Canoagem, rapel, etc.). O nome Trajano de Morais foi dado ao município em homenagem a um fazendeiro da localidade e que, segundo conta a história, muito fez pela região.

História: Como meu pai Anésio era lavrador na sua juventude, é possível que o nosso avô Antonio também cuidasse das coisas da terra como o plantio de café e cana-de-açúcar; plantios comuns naquela região e época, segundo pesquisa. Nossa mãe Alcina falava muito de fazendas de café na sua infância. Descobrimos, através de pesquisas, que o desenvolvimento e o crescimento demográfico daquela região se deu a partir de 1795, “quando a localidade recebeu novos imigrantes vindos de Cabo Frio e de Campos. Macaé progrediu e surgiram então novas fazendas e engenhos”.

 

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"Papai, lições para sempre".

 

Nome: Anésio José Coelho.

Data de nascimento: 29 de julho de 1906.

Naturalidade: Frade (5º distrito de Macaé) ou Trajano de Morais - RJ. Pesquisas em andamento.

Falecimento: 12 de agosto de 1962, no Rio de Janeiro.

Origem do Nome: Anésio – De origem grega – quer dizer: Repouso.

História: Meus irmãos mais velhos contam que meu pai, ainda vivendo e trabalhando em Trajano de Morais, por necessidade de melhor tratamento de saúde para a nossa irmã Eva (ela teve paralisia infantil), resolveu que minha (nossa) mãe Alcina iria para a casa de sua irmã Malvina, no Rio de Janeiro (antigo Distrito Federal - capital da República), em busca desse atendimento hospitalar.

Nossa mãe veio e, mais tarde, por influência dos seus irmãos e parentes no Rio de Janeiro, o velho Anésio resolveu tentar a vida na cidade grande, onde a possibilidade de emprego e ascensão social eram muito maiores que no interior, como até hoje. No Rio de Janeiro, aprendeu o ofício de pedreiro e mais tarde ingressou no Arsenal de Marinha do Rio onde trabalhou durante 33 anos chegando, ao final, ao cargo de Encarregado de Obra ou Supervisor de Obras Civis.

No Rio, morou em vários lugares: Nilópolis, Coelho Neto, Irajá, Quintino Bocaiúva (onde viveu a maior parte da sua vida - entre 1935 e 1961) e depois São Francisco Xavier, aonde veio a falecer (foi sepultado no Cemitério de Inhaúma- Rio de Janeiro - RJ, no dia 13 de agosto de 1962, um domingo, dia dos pais). Nosso pai, quando da sua morte, era Diácono da Igreja Congregacional que fica localizada à Rua Clarimundo de Melo nº 50, bairro do Encantado, Rio de Janeiro.

Personalidade e Características: Na sua juventude, segundo contava minha mãe, o pai era namorador e gostava muito de bailes e festas. Era, porém, intempestivo e às vezes, por algum motivo, achava de acabar com a festa. Conta-se que em certa ocasião, numa dessas festas, andou dando uns tiros, de garrucha possivelmente, e com certeza, por um rabo-de-saia. A minha lembrança dele, na infância e adolescência, é de um pai extremamente severo, mas justo. Pouco falava e pouco ria.

Tinha as suas convicções morais e religiosas e que, acredito, o impediam de uma abertura maior para esse mundão de Deus cheio de nulidades e incertezas. Gostava de se vestir bem e jamais andava sem camisa (apreciava um terno e gravata e pegava trem com essa vestimenta para ir trabalhar no Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro).

Tinha o rosto moreno do sol, mas era bem branco, rosto bem definido, olhos castanhos escuros, olhar profundo, cabelos negros ondulados, bom porte físico, magro, e altura em torno de 1,70 m. Embora sem formação intelectual, gostava de ler, principalmente a Bíblia, e de discutir política. Suas convicções políticas vinham do Sistema Comunista, do qual era simpatizante, e que prega a igualdade social. Nessa época, a da "Cortina de Ferro", expressão cunhada pelo primeiro ministro inglês Winston Churchill, depois da 2ª guerra mundial, para designar a “barreira” ou divisão existente entre os Sistemas Capitalistas e Comunistas, e que então passou a dividir o mundo. Ou você era Capitalista ou Comunista.

Vivia conflitos com a Igreja. Às vezes afastava-se dela, denotando um espírito inquieto e questionador, ainda que só no silêncio da sua mente. De alguma forma, creio, o seu Deus era diferente do Deus dos membros da sua Igreja, talvez mais puro, talvez menos condescendente. Não admitia esses pequenos pecados que hoje a Igreja aceita, como uma concessão para não perder os seus membros.

O semblante dele era sempre sério e às vezes triste, amargurado, eu suponho, por não aceitar as injustiças do mundo e as desigualdades sociais, que diretamente influíam no bem estar da sua família, bem numerosa. A retidão do seu caráter e as suas convicções religiosas e políticas, aliadas a sua introversão, dificultavam, com certeza, um relacionamento mais aberto e próximo com as pessoas.

Tinha o seu mundo e nada desse seu mundo dividia com seus familiares. Se dividia, era com a nossa mãe Alcina, que embora, intuitivamente, muito conhecesse desse seu mundo, pouco ouvia a respeito dele. Suas angústias, sonhos e medos não eram revelados. Penso que o velho Anésio sempre desejou um dia voltar para as suas origens, ainda que nunca tenha ouvido dele e de quem quer que seja, esse desejo manifestado. Essa é a imagem do meu pai que o tempo e os fatos formaram em minha mente.

Desconfio que, geneticamente eu, meus filhos Frederico e Gustavo, meus irmãos Carlos, Marcos, Archimedes e Getúlio, herdamos dele traços dessa personalidade. Essa introspecção que nos remete para dentro de nós mesmos. Essa constante e desmedida preocupação com a vida. Essa maneira de ver e viver a vida veio dele, do velho Anésio. Um dia, o velho Anésio deixou se abater por problemas que habitam e traem as nossas mentes quando nos sentimos fracos e injustiçados, e capitulou. Tomou a iniciativa de nos deixar para sempre.

Hoje, aos sessenta anos, compreendo os seus conflitos, sei o quanto o sofreu e sei também que jamais, por muito mais que sofra, darei essa tristeza aos meus descendentes. Aprendi com ele essa dura e insuportável lição. A dor foi muito grande e teve reflexos durante grande parte da minha vida e resquícios ainda hoje. Durante muitos anos meu corpo estremecia ao ouvir o barulho alto e impactante de alguma coisa caindo ao chão, como quando ele caiu inerte na sala da nossa casa.

Até completar meus cinquenta e três anos, idade que ele morreu, vivi com uma obstinação: ultrapassar a barreira da sua idade. Parecia um desafio que a minha mente criou instintivamente, como tivesse um pesadelo a me dizer: “Veja, ele capitulou, não pense que será tão fácil para você”. Foi essa obstinação que me fez e faz, às vezes, não levar a vida tão a sério. Que me fez ignorar princípios; que me fez e faz buscar alicerce na fé, na filosofia, nas alegrias e fantasias materiais, e a fugir desses alçapões que a mente extremamente preocupada nos arma, nos aprisiona e nos leva a capitular.

 

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"Mamãe, uma mulher de fé".

 

Nome: Alcina da Silva Coelho.

Data do Nascimento: 24 de agosto de 1911.

Naturalidade: Sodrelândia (5º Distrito de Trajano de Morais-RJ).

Falecimento: 11 de outubro de 2003 (Nossa mãe foi sepultada no Cemitério de Mesquita, município de Nova Iguaçu-RJ).

Origem do nome: De origem grega (Alkinoé), Significa mente forte, capaz de transformar poeira em ouro pelo seu poder de convencimento.

Como informação valiosa, nossa mãe Alcina da Silva Coelho, afirmava sempre que o nosso pai, Anésio José Coelho, era nascido no Frade, Macaé. Na certidão de casamento deles consta que ambos eram naturais do Estado do Rio de Janeiro e residentes em Sodrelândia, 5º Distrito do antigo Município de São Francisco de Paula e que a partir de 1938 passou a chamar-se Trajano de Morais, não informando se eram naturais de Trajano de Morais (ela) e ele do Frade.

Não temos, por enquanto, nenhum documento que nos permita afirmar também que o avô Antonio e a avó Idalina eram naturais do Frade – 5º Distrito de Macaé. Deduzimos que se nosso pai Anésio era natural do Frade, nossos avós por parte de pai, provavelmente, também seriam naturais daquele município.

Sobre "Dona Deca", sempre achei engraçado esse apelido da nossa mãe. Era assim que nosso pai, irmãs, sobrinhos, tios e vizinhos a chamavam: Deca. O inusitado e vexaminoso é que até hoje não sei o porquê de Deca. O que quer dizer Deca? Talvez minhas irmãs e irmãos saibam. Fica a promessa de tentar esclarecer esse pormenor.

Como já dito, nossa mãe deixou a sua terra natal em busca de melhor assistência médica para a nossa irmã Eva, no Rio de Janeiro. Lá chegando, foi morar com uma de suas irmãs Malvina e a esta prestava serviços caseiros em troca de estadia. Mais tarde, quando da chegada do nosso pai ao Rio de Janeiro (ela veio primeiro), buscaram uma casa que pudessem chamar desua” e foi a partir de então que se deu o início da formação do núcleo da nossa família na Capital.

Depois de morarem em vários bairros da cidade, estabeleceram-se em Quintino Bocaiúva, bairro do Rio, em uma pequena casa (onde nasci) localizada à Rua Clarimundo de Melo n.º 753. Naquele terreno já haviam outras residências, todas de parentes diretos (tios, primos e avó). Uma vila onde se desenvolveu a melhor e mais romântica parte das nossas histórias e que lá na frente buscarei relembrar.

Personalidade e Características. O fato de ter convivido muito mais com a nossa mãe (9 anos) do que com o nosso pai (17 anos), tornam mais vivas e presentes as lembranças dos tempos de convivência com ela. Do meu tempo de infância me vem a recordação de uma mãe dócil e protetora. Não era de fazer carinho nem cafuné, mas sabia ler em nossos olhos as nossas carências afetivas.

Certo dia, ainda menino, deitei no sofá da sala junto dela e meus olhos lacrimejaram. Foi a primeira vez que senti essa coisa sublime que se chama amor, que se chama paixão. Esse primeiro amor, essa primeira paixão tinha nome: Aída. Loirinha clara, magrinha, sorriso doce, meiga, introvertida como eu, cabelo liso curtinho, tipo Channel, que a diferenciava das demais colegas do Primário, na escola. Aída não sabia e nunca soube que foi o meu primeiro amor platônico. As lágrimas eram a manifestação desse sentimento puro, sublime e inexplicável naquela idade. Dona Deca não disse uma palavra sobre minhas lágrimas, apenas acariciou a minha testa e meus cabelos por um bom momento. Não ousou limpar as minhas lágrimas, como a me dizer que elas eram minhas e minhas seriam por toda a vida.

Mãe de onze filhos aprendeu cedo que para levar a bom termo a sua missão precisaria de fé, abnegação e despojamento. Fé, porque a missão era árdua e sem um Deus que ouvisse as suas preces jamais teria alcançado o seu objetivo com tantos méritos. Abnegação, porque não havia hora para descanso e prazeres da vida. Era só trabalho de segunda a domingo, à beira do tanque, do fogareiro, estendendo roupa, passando roupa com ferro alimentado por carvão em brasa. Despojamento, não que deixasse de ser vaidosa, mas, porque que sabia naquela época, que não tinha recursos, nem tempo, nem meios para tratar, como assim dizer, das coisas materiais e que envaidecem as mulheres: batom, roupas finas, sapatos sofisticados. Não lembro dela com batom, nem ruge, nem sobrancelhas feitas.

Suportou com extrema dignidade todas as tragédias da sua história: a perda trágica do marido, de dois filhos, de uma filha, de dois netos e tantas outras. Seu Deus, não era aquele que ao primeiro chamado vinha aliviar os seus sofrimentos. Seu Deus era um outro, muito distante desses deuses apregoados pela mídia. Era um Deus a quem sabia não podia cobrar mais do que ele podia lhe dar ou que sabia que só lhe daria aquilo que era parte da sua missão. Assim, alicerçada na fé desse seu Deus, não construiu nenhum mundo fantasioso para si nem para aqueles que lhes eram caros. Buscava-o sempre sem jamais perder a esperança, sem jamais blasfemar.

Sabia que seu Deus, sempre que preciso, a transformava em fonte de fé, determinação ou resignação e que só lhe daria o fardo na justa medida da sua grandeza espiritual. Aprendeu, como ninguém, a ler, nas entrelinhas da vida, os sinais que Ele lhe enviava. E a sua missão, ao mesmo tempo dura e permeada de sofrimento, lhe trouxe luz, sabedoria e altivez, valores estes que sabia seriam amanhã sementes nos corações dos que dela se acercavam.

Tenho absoluta certeza que, intimamente, ela se orgulhava dessa bandeira que sozinha construiu, ergueu, e nos deixou como um troféu de batalha. Dona Deca, uma baixinha, morena, de aproximadamente 1,45m de altura, cabelos brancos e encaracolados, alvos como algodão, já no final da sua existência transmitia, através do seu olhar sereno e profundo, todo o orgulho de ter escrito mais bela história da nossa família. Socorria-nos com as suas orações quando a ela recorríamos em busca de colo e carinho. Do alto da sua experiência indicava-nos caminhos a seguir. Conselheira, jamais imiscuiu- se nas relações de seus filhos, noras e genros, preferindo a sábia isenção e semeadura de exemplos que nos fizessem olhar para dentro de nós mesmos, não fosse já a sua presença e história uma bela lição de vida.

O sapatinho alto, a roupa requintada, cabelos tratados e pintados que ignorou na mocidade, foram seus companheiros na velhice. Até para receber a vizinha buscava estar elegante. Era vaidosa, mas sabia usar com sutileza esses mimos que fazem as mulheres mais charmosas e elegantes. E o batom?  Esse nunca vi na sua boca. Mais uma indagação que só agora me ocorre. Por que D. Deca nunca usava batom? Minhas irmãs, com certeza, saberão me dar essa resposta.

Idalina, nossa irmã que cuidou dela nos últimos anos e até a sua morte em 2003, aos 92 anos, nos conta que ela, mesmo sob o peso da idade, jamais entregou o seu baso de comando. Enquanto esteve na casa o comando foi seu. D. Deca foi assim essa pessoa maravilhosa que seguramente se espelhou nos exemplos da vó Jesuína, sua mãe, outro magnífico exemplo de mulher. Com problemas próprios da idade, resistiu o quanto pode a duas internações hospitalares e cirurgias. Nos últimos dias da sua existência, dizia-se cansada, enfadada e despojada do apego a vida. Perdoou a todos nós e partiu.

Durante os últimos quatro anos em que morou em Nova Iguaçu, fez novas amizades e foi lá tão amada e respeitada que nós, seus filhos, não tivemos dúvida em enterrá-la naquela terra que a acolheu com tanto carinho. Dona Alcina (nossa mãe) foi sepultada dia 12 de outubro de 2003, no Cemitério de Mesquita - RJ. Durante a encomenda do corpo até o encerramento do caixão, caiu uma chuva direta e constante sobre nós, como se Deus estivesse purificando aquele instante e sublimando o último ato. Eu entendi assim. Foi a grande Matriarca dessa Coelhada que herdou dela, tenho absoluta certeza, essa capacidade de lutar e suportar as adversidades da vida.

 

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"Vovó - os cabelos marcados pela neve do tempo".

 

Nome: Jesuína da Silva Coelho (nossa avó por parte de mãe)

Data de nascimento: Provavelmente entre 1871 e 1873. Em processo de pesquisas.

Naturalidade: Como nossa mãe Alcina era natural de Sodrelândia -

5º Distrito de Trajano de Morais, provavelmente a vó Jesuína também fosse natural desses município e distrito. Almerinda, nossa prima, nos conta que sempre ouviu que nossa avó era nascida em Rio das Ostras, região praiana no norte fluminense e próximo de Trajano de Morais.

Falecimento: Morreu de velhice em 1974, aos 102 anos de idade, e foi enterrada no Cemitério do Pechincha, em Jacarepaguá – RJ. 

Origem do nome: Jesuína: de origem latina. Quer dizer: aquela que acredita em Jesus.

História: Vó Jesuína, segundo sabemos, assim como nossa mãe, foi criada em fazenda daquela região, embora exista a possibilidade de ela, nossa avó, ser natural de Mimoso do Sul, no Espírito Santo, região onde sempre viveu seu filho Aplínio, esposa e filhos. Esperança é o nome da fazenda onde provavelmente moraram e trabalharam meus pais e avó Jesuína, em Sodrelândia - Trajano de Morais, isso lá pelo início do século passado (entre 1920 e 1930).

Como a vó Jesuína era prima da vó Idalina, mãe do meu pai, o mais provável é que o núcleo da nossa família tenha sido formado alí nos municípios de Trajano de Morais e Frade. Lembro da vó Jesuína, já bem idosa na minha infância. Tinha a cabeça tomada pelos cabelos brancos, pele morena e rugas no rosto que definiam linhas e traçados na sua face, esculpindo um retrato que só o tempo e a sua história puderam criar.

Um rosto anguloso e aristocrático, que adornado por olhos castanhos e doces formavam essa imagem que tento com palavras descrever, mas, isso é impossível. E o que dizer do seu sorriso, sempre doce, meigo e inocente? Seu corpo, arcado pelo tempo, jamais aceitou a mão estendida como auxílio. Me lembro de, ainda menino, pegar no seu braço para ajudá-la a subir os 65 degraus de escada, caminho de acesso a “Aldeia” onde morávamos, em Quintino. Vó Jesuína agradeceu-me e disse-me rindo que ainda tinha mais força do que eu e desafiou-me dizendo que eu não conseguiria escapar de um abraço que ela me desse. 

Aceitei o desafio, achava-me suficientemente forte pois naquela idade, em torno de oito ou nove anos, já subia aquela escada várias vezes por dia carregando em cada mão uma lata com dez litros d'água. Como ela já com os seus oitenta anos poderia prender-me? Não acreditei. Pois, vó Jesuína laçou-me entre seus braços, imobilizou-me, e sem mover um músculo da face permaneceu imóvel como uma rocha enquanto eu, incrédulo, tentava me desvencilhar. Vencida a batalha ela riu baixinho, como sempre ria, abriu os seus braços e, lentamente, começou a subir os degraus da nossa escada.

Vó Jesuína, contava que o seu bisavô era francês e casado com uma nega mina ou alforriada, isso quer dizer: casado com uma negra liberta. Como os franceses normalmente são claros, é possível que essa miscigenação tenha realmente ocorrido. Seu filho Izaltino (nosso tio) era muito branco de rosto vermelho, cabelos lisos aloirados e olhos claros; um típico europeu. Já nossa tia Helena (a mais doce criatura) herdou mais acentuadamente os traços dos nossos ascendentes africanos: tinha a pele morena clara, cabelos negros emaranhados e olhos castanhos escuros.

Traços dessa miscigenação que seu iniciou lá pelos anos 1820/30, são perfeitamente visíveis ainda hoje na família. Um médico recentemente me disse que o meu rosto vermelho indicava origem europeia, mas e o meu cabelo? e o meu nariz? Claro, só podem ter vindo dessa neguinha que fisgou o bisavô francês da minha vó. Existe, entretanto, um pormenor nessa história: como era o pai da nossa vó Jesuína, o nosso bisavô cujo nome não sabemos? Como era o seu marido, o nosso avô Adolpho? Talvez, jamais saberemos, assim como não sabemos da nossa vó Idalina, por parte de pai. É, nossa geração perdeu peças desse mosaico.


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"Vovô, lembranças que o tempo apagou".

 

Nome: Adolpho Frederico da Silva (nosso avô por parte de mãe).

Data de nascimento: Em processo de pesquisas.

Naturalidade: É provável que também este nosso avô seja natural do município de Trajano de Morais ou regiões vizinhas, pois foi naquela região que conheceu e casou com a nossa vó Jesuína. É provável também que tenha falecido ainda jovem, uma vez que ninguém da família tem informações ou lembranças de como era nosso avô. Em processo de pesquisas.

Falecimento: Nossa mãe Alcina, segundo minhas irmãs Eva e Idalina, dizia que Adolpho, seu pai, morreu quando ela tinha três anos. Como ela nasceu em 1911, concluímos que ele morreu em 1914. Conta-se que morreu de algum tipo de doença contagiosa, já que as crianças (seus filhos e netos) eram proibidas de visitá-lo no local onde tentava recuperar-se da moléstia que o acometia. 

Origem do nome: Adolpho: (Lobo Nobre): de origem teutônica - aquele que não hesita em assumir a responsabilidade pelos seus atos (nobre, bravo guerreiro).

Frederico: De origem teutônica: quer dizer: Dirigente da Paz. 

 

Nossa Aldeia.

MCMXL À MCMXL - (1940 à 1960).

 

Quando me propus a escrever sobre a nossa família sabia que me faltava, entre outros atributos, a paciência necessária para embarcar nessa viagem de buscas sem fim. A memória, essa caixinha de surpresas, inexplicavelmente, assim como num passe de mágica, de repente colocava ali diante de meus olhos, como vivas, imagens de um tempo que se foi, sem volta, como acontece com o Universo em expansão. Da mesma forma, teimava em esconder entre as sombras do passado as imagens que a minha mente jamais esqueceu.

Paulo Coelho, o escritor, em “O Alquimista”, diz que "quando estamos determinados a encontrar nossos objetivos até o Universo conspira a nosso favor". Foi por acreditar nisso, foi por acreditar que “querer é poder”, é que insisto em continuar nessa busca, ainda que me falte paciência, memória, capacidade descritiva, senso de cronologia, etc., etc. Fecho meus olhos, tento aprisionar imagens de lembranças desgarradas do meu passado, mas elas são como nuvens que se criam e se dispersam no céu a todo o momento.

Portanto, peças desse mosaico que você, parte dele, também procura pode ou não estar aqui, pode estar nas nuvens da sua mente. Pode ser também que você, membro da “Nossa Aldeia”, tenha construído um outro mosaico de lembranças que não estão registrados na minha memória. O importante é que tentemos, cada um de nós, com as peças dos nossos mosaicos, reconstruir a “Nossa História”.

 

O "MILAGRE" DA CORRESPONDÊNCIA.

 

A Rua Clarimundo de Melo nº 753, localizada na Aldeia dos Coelho, é citada apenas para uma melhor compreensão dos fatos. Lá pelos idos de 1940/1945, se você quisesse mandar uma carta para a Nossa Aldeia, tinha que mandar para o Distrito Federal. Como estou falando de um passado já bem distante, é bom deixar claro aos nossos descendentes que naquela época, nos anos 40, não havia o município do Rio de Janeiro, havia o Distrito Federal que era então a Capital dos Estados Unidos do Brasil e ficava no Estado do Rio de Janeiro, onde hoje existe o município do Rio de Janeiro.

É verdade! Bem, mais isso serão descobertas à serem feitas pelos nossos “curiosos” descendentes nos livros de histórias do Brasil e, quiçá, em trechos da “Nossa História”. Nossa Aldeia era composta de cinco famílias (todos parentes entre si) que moravam em casas construídas no topo de um terreno íngreme, onde se chegava através de uma escada de cimento com 65 degraus. Na casa principal, construída na parte da frente do terreno, moravam nossa prima de primeiro grau Neli Costa da Silveira com o seu marido Ari Silveira e os filhos: Shirley (Shirloca), Sueli (Sií) e Ari (o Arizinho).

Das lembranças dessa casa, as mais vivas são a pintura das paredes internas da sala principal, em arranjos florais, as pinturas, na varanda, de um artista da época (Nilton Bravo, falecido) que pintava paisagem nos bares da cidade e que mais tarde se tornariam famosas. Se a memória não me falha, as pinturas gravadas nas paredes daquela varanda eram um cisne numa paisagem circular e na outra um dragão. Creio que ainda exista entre nós fotos daquela casa (existente ainda), que nos mostre esses trabalhos artísticos que nunca vi em outras residências do bairro.

Na frente dessa casa erguiam-se duas mangueiras frondosas; a maior, de manga espada e a menor, de manga rosa. Estão lá até hoje. Impossível não passar lá embaixo na rua e não erguer os olhos em busca delas, em busca dos balanços das nossas infâncias, das cordas, dos cipós dos Tarzãns que fomos, em busca dos seus frutos e dos quais, ainda hoje, guardamos lembranças dos seus cheiros e paladares. Era ali, bem defronte dessas mangueiras, sentados nos degraus redondos, de cimento liso e vermelhos da varanda, que ao findar da tarde, quase ao escurecer, ficávamos a escutar dos mais velhos histórias e lendas de príncipes, reis, mulas-sem-cabeça, saci-pererê, lobisomem e tantos outros mitos que povoavam o imaginário daquela época e de ainda hoje.

Os mais velhos, descobri mais tarde, quando queriam se ver livre dos menores, para conversas impróprias a estes, tratavam de contar só histórias dessas coisas ruins: mula-sem-cabeça, lobisomem, morcegos, bicho-papão, etc. A gente ó, saía de fininho, cada um para as suas casas em busca da proteção materna. Impossível esquecer o céu límpido e estrelado que era tão e magistralmente belo na minha infância. Me lembro de, deitado no sopé da varanda aberta da Neli, ficar contando estrelas até onde a matemática da minha idade me permitia alcançar. Perdia-me no meio delas e as vezes já não sabia de haver contado esta ou aquela. Eram dezenas, centenas!

 

E O CONTAR DAS ESTRELAS...

 

Muitas poucas vezes na vida depois consegui ter presente esse momento mágico e único. Era como um sonho de olhos abertos naquele absoluto silêncio, apenas ponteado pelos cândidos sons de grilos que mais acrescentavam harmonia e sintonia entre eu e aquele mundão de Deus, misterioso, acalentador, esplendoroso, magnífico, pontilhados de prata luminescentes. Por vezes tinha vontade que não houvesse mais dias.

Gostava daquele mundo sem cobranças, sem obrigações. Era só eu, minhas fantasias, meus sonhos de “pequeno príncipe”, as estrelas, o silêncio e os grilos. Escola, tabuadas, carregar lata d'água, fazer compras, essas obrigações. Francamente, a noite era muito melhor. A Lua Cheia também exercia em mim um grande fascínio. A gente, criança, ouvia os mais velhos dizerem que dentro dessa lua podia se ver São Jorge lutando contra o Dragão, imagem tão presente na minha infância já que a Igreja Matriz de São Jorge era ali, bem ao lado da nossa Aldeia e lá existia, como ainda hoje, um imenso São Jorge em, trajes guerreiro, montando um esplendoroso cavalo branco e que se sobrepunha a um terrível dragão que punha fogo pelas narinas.

Assim, em noite de Lua Cheia, eu me perdia tentando encontrar nas imagens geográficas da lua, uma que se assemelhasse a imagem da luta entre São Jorge e o terrível Dragão. Quando não encontrava nenhuma imagem que se assemelhasse àquela luta, imaginava que talvez estivessem lutando do outro lado da lua. Sabia, de antemão, que São Jorge sempre vencia e isso trazia uma certa admiração por ele. Sempre foi muito marcante para mim essa imagem do santo guerreiro, seja pela sua estátua imponente dentro da sua igreja ao lado da nossa casa, seja pelo imaginário da luta do bem contra o mal que, nesse caso, mentes férteis criaram e colocaram dentro da lua. Óh, lua!

No lado esquerdo da casa da frente, ou casa da Nely, existia um magnífico pé de Ficus onde também, nós, crianças da “Aldeia”, esquecíamos da vida montados num dos seus galhos que se estendia horizontalmente até o terreno vizinho e que na nossa imaginação se tornava um forte e valoroso corcel. Este pé de Ficus ficava bem próximo da janela da casa de meus pais que era fundo e extensão da casa da frente. Casa pequena de quarto, sala e cozinha.

Nossa casa, quando menininho, me lembro ainda, não tinha banheiro. Aliás, a exceção da casa da Nely, nenhuma das outras quatro casas da Aldeia tinham banheiros próprios. Havia apenas um banheiro externo para, pelo menos, 25 pessoas e que todos usavam para as suas “necessidades” e banhos a balde e caneco, pois não havia nem um chuveiro, acreditem, nenhum chuveiro!

Não se ia no banheiro, ia-se à “casinha”. Em casa, usava-se o urinol ou “penico” para se fazer xixi e outras necessidades à noite, ou então quando a “casinha” estava “ocupada”. De dia, dependendo das circunstâncias, era comum as crianças irem ao mato e limparem-se com papel-de-pão ou jornal, quando não, até com folhas de mato, de bananeira ou outras menos apreciadas. Não raro saia-se com a bunda ardendo pela utilização de “folha” desconhecida. Papel higiênico da “Santa Cruz” era coisa de gente abastada e muitas poucas vezes fazia parte da lista mensal de compras da D. Deca.

Nada disso, entretanto, era problema. Nada disso, para nós crianças, eram infortúnios e é simples de explicar: Não conhecíamos outro mundo diferente daquele, conhecíamos apenas a "Nossa Aldeia". Hoje, fico embasbacado de imaginar como foi a nossa casa. Imaginem só: na casa de quarto, sala e cozinha habitavam, meu pai Anésio, minha mãe Alcina (Dona Deca), minha irmã Eva (o apelido não vou dizer prá ela não brigar comigo), minha irmã Jesuína (Ina), meu irmão Getúlio (o Rato), minha irmã Vilma (a Vilminha) meu irmão Archimedes (o Médio), meu irmão Carlos (o Lota ou Carlinhos), minha irmã Idalina (a China), eu, Cleber (o Beibe) e meu irmão Marcos (o Marquinho).

De dia não ficava tão difícil harmonizar as coisas porque a rua sempre foi a melhor forma de se desocupar espaço na casa. Os mais velhos, que já estavam trabalhando, Getúlio e Jesuína, partiam cedo para os de cera velha, inevitavelmente feríamos nossas mãos e joelhos pois os resíduos da palha espalhados pelo chão, mesmo com estes protegidos com pedaços de pano, insistiam em transpassá-los e atingir impiedosa e dolorosamente as nossas carnes. Para nós, crianças, aquilo não era trabalho, era castigo. Mas foram essas obrigações que forjaram a nossa paciência, humildade e capacidade de suportar.

Depois da terrível palha-de-aço, aplicávamos o removedor "Faísca " e em seguida a primeira e segunda mão se cera, agora amarela, para combinar com as nuanças de cores do novo piso. Usávamos para “puxar” o brilho da cera um escovão (peça de ferro, pesada, com mais ou menos 25 cm de comprimento, 10 m. de largura e 15 m. de altura, com escova sob a sua base, sustentada por um cabo de madeira igual ao cabo de uma vassoura.). Esse “utensílio” deveria pesar em torno de 15 kg. no mínimo, pelo menos é o que a minha memória aquilata, considerando-se o esforço que desprendíamos para tanto. Era exaustivo ficar “empurrando” e “desempurrando” o escovão sobre o piso de taco, até que este atingisse o melhor brilho. 

Mas, como criança está sempre inventando, criamos o “escovão infantil” para alegrar o “ambiente de trabalho” de forma simples, prática e lúdica, embora o esforço fosse o mesmo. Era assim: o irmão mais velho mandava o irmão mais novo sentar-se sobre um pedaço de cobertor de lã e puxava-o por toda a sala e cantos, ora lentamente, ora ligeiramente, ora em curvas. Enquanto o cobertor de lã fazia a sua parte “puxando” o brilho da cera sob o peso do irmão mais novo, este se esbaldava de rir com os arranques, freadas e curvas que o mais velho fazia ao puxar aquele cobertor. 

Na verdade, um carrinho de sonhos e fantasias. Como faz falta hoje essa capacidade de rirmos dos nossos próprios infortúnios. Mais tarde, o “velho Anésio” comprou uma enceradeira elétrica “Arno” que, embora prática e eficiente, não nos livrou de parte pior do serviço; o trabalho com a palha-de-aço continuou. A enceradeira só veio mesmo a substituir os dois escovões: o de ferro e nosso “infantil”. Na sala da nossa casa, além do sofá-cama “Drago”, havia um cristaleira e sobre ela um rádio de válvula com três botões: liga-desliga, volume de som e busca das estações. Me falta elementos para descrever aquele modelo de rádio trabalhado em madeira-de-lei e vazada, de forma que sob revestimento de tecido brilhante e tênue doirado, se posicionasse o alto falante.

 

RARIDADE: RÁDIO DE VÁLVULA COM TRÊS BOTÕES.

 

E como explicar o que eram as válvulas e demais peças que o compunham? Só vendo! Dele se ouvia programas como: “A hora do Pato” de Ari Barroso, “Programa do Almirante”, “Programa do Cezar de Alencar" e tantos outros. Gostava muito de ouvir naquele rádio a música “Luar do Sertão” que tinha como principal a seguinte estrofe: "Não há ó gente ó não luar / como esse do sertão" ou então; "Sertaneja" que dizia: Sertaneja / se eu pudesse / Se papai do céu me desse / O espaço pra voar / Eu corria natureza / Acabava com a tristeza / Só pra não te ver chorar...

 

 

 

Bons tempos, belas músicas. “Sertaneja", vim saber recentemente, foi composta por René Bitencourt, compositor, morador de Jacarepaguá e tio-padrinho da Carminha, também antiga moradora do bairro, vizinha da nossa mãe nos anos 70 e cuja amizade permanece até hoje. Numa das raríssimas vezes em que lembro do meu pai brincando comigo, ele pegou uma bola de borracha vermelha, do tamanho de uma bola de futsal, que era um dos nossos poucos brinquedos, e começamos a jogar um para o outro no interior da sala. Num dos lances, a bola atingiu a cristaleira quebrando o vidro de uma das portas. O fato mais marcante, entretanto, e que nos fez cair no riso, foi a música que tocava no rádio naquele instante: uma música nordestina que dizia assim: "Eu vi dois siris jogando bola eu vi. Eu vi dois siris bola jogar".

 

"DOIS SIRIS" JOGANDO BOLA E A LEMBRANÇA QUE O TEMPO NÃO CONSEGUIU APAGAR.

 

No único quarto da casa, a lembrança é de uma cama-de-casal, um guarda-vestidos (como se chamava o armário naquela época), uma penteadeira móvel que caiu em desuso e hoje só se encontra em antiquários), e uma máquina de costura marca "Singer ", nada mais. Da cozinha, quase nada: sob piso de cimento cru alisado, apenas uma pequena dispensa para a guarda de alimentos, uma moringa d'água (ninguém tinha geladeira na Aldeia) sobre a mesa, depois um filtro d'água, de cerâmica vermelha (desses que ainda se vê hoje nas lojas), um fogareiro de carvão onde D. Deca preparava as nossas refeições. É isso mesmo, na época, cozinhava-se num fogareiro alimentado com carvão! Mais tarde, veio o fogão à querosene, um grande progresso.

Sobre duas prateleiras fixas numa das paredes, acomodavam-se as panelas e sob estas, em suportes em forma de ganchos, penduravam-se as canecas, conchas, escumadeira e todo esse aparato indispensáveis numa cozinha comum como as que ainda hoje existem nos casas mais humildes desse país. Coisas que nos vem à lembrança quando vemos novelas ou filmes de época que retratam esse tempo. Certa feita, o “velho” Anésio, cismou de pintar o filtro d'água, pois queria-o mais bonito e vistoso. Ignorava que a camada de tinta fecharia os poros da cerâmica, impedindo, por conseguinte, a troca de calores e a manutenção da temperatura da água. Foi um desastre! O filtro ficou lindo e a água quentíssima! Sob o calor reinante e reclamação da família, o velho teve de comprar outro filtro e aposentar o antigo. Aprendeu ele, aprendemos nós, que filtro não se pinta; ou melhor: só se pinta se você tiver uma geladeira para guardar a água dele filtrada e, na pior das hipóteses, gostar de beber água quente com gosto de tinta.

Mais tarde, o pai, profundo conhecedor da arte da construção civil, resolveu construir um banheiro para a nossa casa, o que não tinha feito antes, creio, por falta de dinheiro para a compra de materiais. Ajudei-o ainda menino nessa empreitada e nele o pai colocou um chuveiro, ainda abastecido com água fria, pois era proibitivo o uso de energia para melhor usufruto. Banho quente, só com água fervida na “chaleira” e misturada com água fria na bacia.

Além do banheiro, na área que cobriu no fundo da nossa casa, o pai instalou um tanque de lavar roupa onde D. Deca, protegida do sol e da chuva, podia cuidar melhor da sua “lavanderia”. O serviço de “ajudante de pedreiro” que desempenhei durante sábados e domingos, me rendeu algumas moedas e o reconhecimento do “velho”.

Pelos relevantes serviços prestados, fui premiado com o “primeiro banho” naquele chuveiro. Foi assim: o pai fez as instalações hidráulicas, testou o registro, abriu, caiu água, fechou. Estava ali do seu lado com certeza, com os olhos brilhando. O velho me olhou, percebendo o meu anseio, me disse: Por que você ainda não foi tomar banho? Agora eu podia ir ao banheiro, não à “casinha”. Percebi, de imediato, a importância da conquista, principalmente quando ela é fruto do seu suor, do seu esforço. Ô chuveirada gostosa e inesquecível, com sabonete “Eucalol”, ao invés do sabão “Português” usado naquela época para lavar roupa e gente!

Nossa casa, na sua humilde simplicidade, não tinha, como bem disse o Chico Buarque, “na fachada escrito em cima que era um lar”; não precisava, era. Na parte superior do terreno, onde ficavam as três casas restantes da “Nossa "Aldeia”, se chegava pela subida de um pequeno lance de escada ou rampa. Lá, a disposição das três casas no terreno formavam um U, ficando à direita de quem subia, a casa da nossa tia Etelvina da Silva Frões (irmã da nossa mãe Alcina), casada com o nosso tio João da Costa Frões, que por sua vez eram os pais dos nossos primos: Poli (não me recordo o apelido), Arcênio (Juju ou Velha) e Alcéia a Ceinha), que viviam com eles. Nely (...) e Leny (...), as outras filhas do casal, já casadas, moravam em outras casas da nossa “Aldeia”. Nely, na primeira e Leny na última. Na casa localizada no fundo do terreno, moravam a nossa prima Leny da Silva, casada com Ernesto Muniz da Silva, pais dos nossos primos; Elizabeth Muniz da Silva, (a Beta ou Betinha) e Roberto Muniz da Silva (o Robertinho).

À esquerda, na parte superior do terreno, ficava a casa onde moravam a tia Helena da Silva Frões (irmã da minha mãe e da tia Etelvina) casada com o nosso tio Arthur da Costa Frões (irmão do nosso tio João), pais dos meus primos: Hermes da Silva Frões (o Herminho) e Almerinda da Silva Frões (a Merindinha). Nessa casa, que a princípio era de madeira, como as casas simples de descendentes de europeus que vivem no sul do Brasil, morava também a nossa avó Jesuína Frederico da Silva, a mãe maior, a mãe de todos nós. Mais tarde essa casa de madeira foi substituída por outra de alvenaria. Cada um dos chefes de família da “Nossa Aldeia”, a seu modo, foi acrescentando aos seus imóveis benefícios em favor de suas comodidades e privacidades.

Todas as cinco casas da “Nossa Aldeia” pertenciam ao nosso tio Bráulio que recebia de cada um dos seus parentes-inquilinos, acredito, uma pequena quantia a título de aluguel. Esse nosso tio, era irmão dos tios João e Arthur e possuía um armazém e uma quitanda que ficavam localizados bem em frente a antiga Escola XV (na mesma Rua Clarimundo de Melo), unidade do governo federal que cuidava da proteção de meninos carentes, órfãos, ou que tivessem praticado algum tipo de delito. Tio Arthur foi gerente desse e armazém e mais tarde, junto com o nosso tio João, passou a trabalhar na cozinha do hospital existente na área onde se situava a antiga Escola XV, hoje FAETEC, unidade de ensino do governo, voltada para a informação e formação de jovens e adultos em diversas áreas do saber. 

Entre essas três casas, ou no meio do “U”, havia uma área central comum, aberta, sem cobertura, que era o chão de todo o mundo e servia também para tudo: armar varal de roupa, armar fogueira, soltar balão, brincar com bola de gude, rodar pião, culto ao ar livre, matar galinha, matar porco, e tantas outras coisas. Presença marcante nesse pedaço era o Ernesto, marido da Leny. Ernesto era motorista de caminhão de limpeza da prefeitura, o que seria hoje uma “COMLURB”; um homem forte e musculoso que mais parecia um bravo guerreiro, pela sua aparência física. Inesquecível a figura do Ernesto sentado em cima de um caixote, tomando uma "Brahma, Malzbier ou cerveja preta “Black Princess”, enquanto amolava o seu punhal para cravar no coração de um dos porcos que criava no chiqueiro ao lado da sua casa. Criança é bicho danado! Ernesto dava sopa e a gente rapidamente sorvia a espuma das suas cervejas, sempre depositadas em copo tipo “americano” que resiste ao tempo; em  qualquer “pé-sujo” (botequim de segunda categoria) do Rio de Janeiro, ainda encontra-se esse tipo de copo que nos acompanha desde a infância.

Algumas vezes ajudei a segurar porco para o Ernesto matar. O porco, assim como o carneiro, parece que sabe quando vai ser morto. Criança ainda, vi nos olhos dos porcos a angústia e a solidão de quando se sabe que se está só e nada mais resta. Mas a cena não me afligia tanto como hoje, talvez porque visse naquilo um ato de coragem. Se dependesse, hoje, de cortar a cabeça de uma galinha para sobreviver, não sobreviveria.

Outra inesquecível “figura” da “Aldeia” era o “seu Ari”, marido da nossa prima Nely; um homem de boa aparência e estatura que tinha como cacoete ficar desfiando, desfiando e puxando longamente os fios do seu vasto bigode. Ari era um homem de aparência bastante séria, assim como o nosso pai. Era também nervoso e às vezes brincalhão. Ari era, nessa época, “Chauffeur” (motorista) do Ministro da Fazenda e sempre que podia levava o automóvel do ministro (um Hudson) preto para casa. Algumas vezes “passeei” naquele carrão. Um dia ele levou a mim e aos seus filhos, Shirley, Ari e Suely, até a porta da nossa escola. Cena inesquecível! Era muito raro um carro como aquele no bairro, muito menos carregando um bando de moleques para a escola.

Voltando no tempo, me vejo sentado no banco da frente, ao seu lado, e quicando como bola de ping-pong que não parava nunca. O banco de couro do automóvel era sustentado por fechos de molas rígidos que subiam e desciam ao sabor do movimento do veículo sobre as ruas de paralelepípedos. Eu, pequeno em tamanho e peso, quicava, quicava, mas como qualquer criança achava divertidíssimo! A história do gato preto que roubou o bife do prato de janta do seu Ari, nem vou contar. O felino, pela ousadia, teve morte trágica. Ari não poupou o pobre animal que pegou o seu bife apenas para se alimentar. A velhice e a vida nos ensina a controlar os nossos instintos mais selvagens e administrá-los com sabedoria. Ele, o seu Ari, se vivo fosse hoje, com absoluta certeza, seria capaz de ofertar seu bife a um faminto felino.

Lições que só se aprendem com o tempo. Tios João e Arthur, faziam puxa-puxa e pés-de-moleque para vender e complementar a renda de manutenção de suas casas. Nossas tias, Etelvina e Helena, deles respectivas esposas, trabalhavam fora, na “Fábrica Colombo”, de doces, famosa até hoje pela excelência de suas “goiabada e marmelada”. Gostava de ficar ao lado dos tios vendo-os ralar o coco, preparar a calda de açúcar queimada, misturar e depois distribuir, homeopaticamente, com ajuda de uma concha, as porções de cocada, em pedaços de papel tipo seda (acho que celofane), embrulhá-las, uma a uma, e arrumá-las, em camadas, numa mala de madeira pintada de azul que se abria em duas partes. Uma parte para pés-de-moleque e a outra para puxa-puxa. Cabia naquela mala de madeira em torno de 200 doces. A venda eles faziam à tardinha, invariavelmente, pelas ruas e arredores de nossa "Aldeia". Tio João sempre aceitava a nossa “ajuda” na confecção e embrulho de seus doces e em contrapartida sempre nos brindava com um pé-de-moleque ou puxa-puxa.

De alguma forma, nós crianças, aprendíamos assim que nada era de graça, havia naquela troca de interesses a semente da relação que norteia a nossa sobrevivência; a de capital x trabalho. Tio João, também foi Pipoqueiro e, segundo diziam, fazia “ponto” em frente à Praça de Quintino, junto a estação do trem, há mais ou menos dois quilômetros de onde morávamos. Tio João, na hora do almoço ou janta, não precisava trazer a carrocinha de pipoca de volta com ele. Tinha como seu fiel escudeiro o famoso “Perigo”, um cão negro e forte que afastava, somente com o seu o rosnar, qualquer engraçadinho que tentasse surrupiar salgadas e doces pipocas do seu dono. Perigo fazia jus ao nome que tinha.

As tias Etelvina e Helena, embora filhas da mesma mãe (a vó Jesuína), eram bastante diferentes na sua essência. Tia Etelvina era clara, inquieta, nervosa. Já, tia Helena, era morena, paciente e meiga. Ambas, entretanto, também nos davam carinho e afeto, como se fossem nossas segundas mães, e eram. Tia Helena, talvez a mais apegada a religião da maioria dos membros da “Nossa Aldeia”, o Protestantismo, tinha tanta fé no seu Deus que era possível enxergar a existência dele no fundo dos seus olhos. Com ele, ela viveu em paz até o último dos seus dias. Gostava muito de conversar com essa tia, gostava de ver a retidão do seu caráter e sua pureza d’alma. Lembro como se fosse hoje do dia em que ela me falou da morte da nossa vó Jesuína. Estava ao lado da vó quando ela expirou e descreveu para mim, com essas palavras, o que foi aquele desenlace, aquele momento: “Da sua boca eu vi sair fios de luzes prateadas e azuis”. Ah, tia! Quanta saudade da sua doçura. 

 

A ESCOLA

 

As escolas públicas do nosso primário, onde estudaram, Carlinhos, Archimedes, Idalina, Marquinhos, Sueli, Shirley, Arizinho, Betinha, Roberto e eu, eram: Escola Rocha Pombo, na Rua João Barbalho; Escola Félix Pacheco, na Rua Assis Carneiro, ou Rua da “Curva” e Escola São Salvador - Rua Almeida Nogueira, 27. A primeira em Quintino e as demais no bairro de Piedade. A Escola Rocha Pombo ficava, aproximadamente, a uns quinhentos metros de casa. Já as outras ficavam a mais ou menos um quilômetro e meio de distância. Idalina, Shirley, Suely, Arizinho e eu, estudávamos na que ficava mais longe, a inesquecível Escola São Salvador, onde aprendemos com as professoras Anadir, Maria Estela, Ana Lúcia, Fernanda e outras das quais já não me recordo o nome, o beabá, vogais, consoantes, leitura silenciosa, ditado, decorar a tabuada.

Nessa escola, na mesma sala, também estudou Aída, a loirinha por quem, ainda criança, me apaixonei platonicamente. Dos colegas de sala ainda recordo dos meninos Carlos Alberto, Rodolfho, Sidayrton, Francisco, Narciso e das meninas, Dagmar, Terezinha, Fernanda e da própria Aída. O uniforme era composto de camisa branca de abotoar, com mangas curtas e um bolso ao lado esquerdo do peito onde era bordado o símbolo da escola. Na manga esquerda da camisa também eram bordadas as divisas que indicavam o ano de aprendizado do aluno. Assim, uma divisa indicava que o aluno estava na “primeira série”, duas divisas na “segunda série”, isso até a quarta série. Na quinta série ou “Admissão”, era acrescentado, sobre as quatro divisas já existentes, um círculo também bordado com uma figura que, infelizmente, “Varreu-se-me da memória”, como diziam os velhos daquela época.

Era a série que todos invejavam, que todos queriam chegar: Terminada a quarta série do Primário a “Admissão” era uma espécie de vestibular para o ginásio. A calça curta azul marinho, de abotoar, de bom tecido, era composta de dois bolsos traseiros e dois bolsos laterais (tipo faca), no princípio com botões na altura da cintura para fixação dos suspensórios e mais tarde, com passadores para o uso de cinto. Os sapatos eram pretos, de couro, que se calçavam sobre meias brancas de algodão.

Três detalhes, hoje curiosos, mas bastante comum naquela época, eram a utilização de “chapinhas” nos sapatos da criançada  e também nos  dos adultos. A chapinha era uma pequena placa de aço achatada, que se fixava nas partes mais desgastadas da sola dos sapatos para se economizar. Assim protegida, a sola do sapato durava muito mais, protelando-se a hora da meia-sola, troca da sola inteira e troca de salto dos sapatos. Usava-se, ainda, em dias de chuva, a “galocha”, que “vestiam” os sapatos e os protegiam dos lamaçais e poças d'água muitos comuns naquele tempo, pois a maioria das ruas ainda não eram calçadas com paralelepípedos.

A galocha nada mais era do que uma proteção de borracha bastante flexível feita nos mesmos moldes de um sapato e que serviam para protegê-los, assim como uma capa nos protege das intempéries. Acrescente-se a este uniforme uma pasta de couro legítimo, com divisórias internas para a guarda dos cadernos de Português (capa azul) Matemática (capa vermelha), história (capa amarela) e geografia (capa verde), livros, estojo de madeira para lápis e borracha e a nossa merenda (lanche, sempre pão com mortadela, ou manteiga, e só), embrulhado em papel-de-pão e junto um copo de plástico de “armar” para água ou refresco (o meu era azul), que não raro desarmava, derramando as nossas “sedes”. Pronto, esse o retrato do nosso uniforme e acessórios!

As mães e as instituições tinham mais zelo por esses pequenos valores que fizeram e fazem diferença. Ninguém entrava na sala de aulas se não tivesse regularmente vestido e asseado. Uma calça ou camisa diferente? Nem pensar! Existia a disciplina, conceito organizacional, e tantos outros valores que foram se perdendo ou se transformando através dos tempos. Diariamente, desde a primeira até a última série, formava-se em cada turno todas as turmas e ensaiava-se e cantava-se o hino nacional, o hino à Bandeira, o hino da Independência e outros que me fogem à memória.

Aprendia-se os símbolos de uma Nação, o que é cidadania, o que é ser um cidadão, tudo sem grades, tudo sem paredes pichadas, tudo sem greve de professores, tudo com professores que se orgulhavam do seu ofício porque eram bem remunerados e respeitados na Sociedade, tudo sem surrupios de valores da Caixa Escolar, tudo com refeição balanceada e digna para as crianças, tudo com médico e dentista, farta aplicação de flúor e periódica  distribuição da pasta de dentes “Kolinos”, aquela que ainda hoje faz sucesso. Ainda lembro de prospectos fixados nos quadro de aviso da escola com uma propaganda da pasta dentifrícia “Kolinos” em que aparece um dentinho sorrindo e escovando a si próprio.

Assim era a “Nossa Escola”. Depois das aulas, crianças que éramos, com energia de sobra, saíamos em bandos pelas ruas, fazendo algazarra, brincando, jogando gude, jogando pedrinhas uns nos outros, trocando figurinhas e, quando muito, apertando a campainha de uma casa que sabia-se existir um cachorro feroz e barulhento. Passava-se na quitanda ou padaria do bairro para comprar bala Ruth, cavaca, quinhentos réis de “banana machucada”, um “Grapete”, um “Sustincau”, um “Crush” ou um “Chica-Bom”. Assim, brincando, percorríamos aquele quilometro e meio de ida e volta à escola. Não havia passe de ônibus para estudante.

Aliás, ônibus era coisa rara e cara. Mais popular era o bonde que passava pela “Curva da Piedade” próxima da Escola e que, de vez enquanto, teimávamos em pegar, ainda que sob vigilância do seu “Motorneiro” (o cobrador), um bigodudo, que nos fazia descer com a ameaça de fazer queixa à nossa professora, utilitária daquela linha e passageira constante do “13”. Este sim, para a época, era um grande atrevimento.

Ai de nossas bundas se nossa professora soubesse e contasse para nossos pais! Pedra em vidraças? Nem pensar! A formação era outra, existia respeito ao patrimônio alheio. Na nossa “Aldeia”, como em qualquer grupo humano, havia as divisões, mais por aspectos etários do que por qualquer outro motivo. Assim, as tias e vós formavam um núcleo, os maridos e avôs outro, os rapazes e moças (já na idade de namorar) outro, as meninas e meninos pré-adolescentes outro, e as crianças. 

No “quadro” da minha infância, Getúlio, Jesuína, Alcéia, Poli, Arcênio, Hermes e Eva, formavam o grupo dos que já estavam na idade de trabalhar e namorar. Já Archimedes e Almerinda eram pré-adolescentes e já ensaiavam abrir seus corações para as flechas do Cupido. Almerinda, por conta desses anseios, vivia recebendo broncas da vó Jesuína que a ela protegia. Vó Jesuína não queria vê-la “paquerando” qualquer um e, se preciso fosse, até vassoura utilizava para acabar com “aquelas sem-vergonhices”, que, se bem lembro, não passavam de olhares furtivos a, no mínimo, dois metros de distância do “pretendente”! “Sua Bruaca”!  Era a expressão que vovó sempre usava para chamar a atenção da “Merindinha”.

Archimedes, fazia sucesso com os “brotinhos” nos bailes de Rock And Roll, por ser um excelente dançarino. Certa vez, num baile em Campo Grande, subúrbio da zona oeste do Rio, criança que era, fiquei admirado e orgulhoso de ver meu irmão dando show na pequena sala da casa onde a festa acontecia. Sob o som de Elvis Presley, Neil Sedaka, Chubby Checker, Paul Anka, Bill Halley, Billly Baterfield, e tantas outras estrelas do Rock, deslizava na pista enquanto era admirado por meninas e meninos. Descobri ali que a dança, independentemente de ser um instrumento de fantasia e alegria, é igualmente um tremendo aliado daquele que pretende, através dela, se lançar a uma conquista. Você pode até não ser bonito, mas se dança bem já leva grande vantagem sobre o “bonitinho” que não sabe nem “o dois pra lá, dois pra cá". Eu me senti o próprio “bonitinho” naquele baile. Meu irmão, lourinho, bom dançarino, usava muito bem esse recurso que o ajudava a atingir o coração daqueles “brotinhos”.

 

 

O meu grupo, o grupo das crianças daquela época contavam com idades entre os sete e os 12 anos eram: Idalina, Shirlei, Carlinhos, Cleber, Sueli, Arizinho, Betinha, Roberto e Marquinhos. É desse grupo, pela vivência e interesses em comum (as brincadeiras) que guardo as melhores lembranças. Os grupos “de cima” não faziam parte do nosso “universo” e, por isso, talvez, não tenha tantas lembranças da convivência com eles, a não ser das sacanagens que faziam com os menores. Exemplo disso, são as histórias de mula-sem-cabeça e outros mitos já lembrados, do bolo na mão ou “cascudo” quando perdíamos deles em jogos de damas, “nente” etc.

Às vezes me pergunto por que os irmãos mais velhos gostam tanto de sacanear os mais novos. Archimedes, "que Deus o tenha", era o mais perverso de todos. Certa ocasião chamou os menores e disse o seguinte: aquele que ganhasse a corrida por ele determinada, teria o direito de brincar com o seu “arquinho” (uma roda de velocípede que se fazia girar com a utilização de um arco de ferro e cujo atrito com a roda produzia um som que até hoje dorme nos meus ouvidos). Era um brinquedo de tamanha simplicidade e que talvez por isso, fosse um dos mais querido, principalmente pelos meninos. Pois bem, ganhei a corrida e o meu prêmio, como combinado, estava à minha disposição atrás do pé de Fícus da nossa “Aldeia”. Fui até lá correndo e quando fechei o brinquedo em minha mão, meus olhos eram só lágrimas de dor. Meu irmão reservou para o “vencedor” da corrida um prêmio extra: antes de colocar o brinquedo atrás do pé de fícus, esquentou-o no fogão da nossa mãe.

Minha mão esquerda, queimada, ficou "empolada" e dias depois pedaços de pele se soltavam dela. Foi essa a forma que encontrou para “dizer” aos mais novos que não mexessem em seus brinquedos, que não enchessem o seu saco! O pai deu-lhe a maior surra que já vira e eu, comecei a chorar ao vê-lo apanhando tanto!  Mas os pais e avós administravam muito bem essa relação de força e poder, de forma que ninguém ficava impune pelos “pecados” que cometiam. Assim, vivíamos uma relação familiar bastante equilibrada e respeitosa. É preciso salientar que essas malvadezas perpetradas contra os mais novos eram raríssimas.

O tempo da gente criança, antes da escola ou depois dela, era só para brincadeiras, como ainda hoje: brincávamos de pique, amarelinha, chicotinho queimado, passar o anel, pera, uva ou maçã, entre tantas outras; brincar de roda, rodar pneu, atiradeira, subir em árvores, subir nos morros das redondezas, colher frutas no nosso quintal e no quintal alheio, correr atrás de doce de São Cosme e São Damião, correr atrás de balão, soltar balão, pegar as enormes flechas de São Jorge (fogo de artifício que eram lançados ao céu sempre que havia festas do Santo Guerreiro ao lado das nossas casas), jogar bola de gude, soltar pipa, rodar pião, balanço, carniça, maria-preta (espécie de balão que fazíamos com jornal), tambor (que confeccionávamos com lata de manteiga de dez litros e papel de saco de cimento esticado no calor do fogo), amassa pedra (espécie de trenzinho feito com latas de cera cheias de terra, fechadas e que unidas por pedaços de arame liso formavam a nossa “composição”, às vezes com até cinco vagões), flechas-de-capim (uma arte que já ensinei aos meus filhos e netos e que embora  simples de executar é muito difícil descrever); bilboquê (quem lembra?) cama-de-gato, Mandrake (quem lembra?), cineminha, quem lembra?

Era assim: pegava-se um caixa de sapato de papelão, recortava-se na tampa um retângulo como se fosse a tela do cineminha, furávamos, horizontalmente, a caixa na parte superior e inferior e nesses furos traspassávamos pedaços de arames que seriam as “roldanas” da nossa projetora. Recortávamos dos jornais e revistas as fitas de desenhos em quadrinhos, emendávamos e logo depois abríamos a tampa da caixa de papelão e colávamos a ponta das fitas de desenho nos arames e enrolava, para baixo e para cima; depois era só fechar a caixa e girar a ponta dos arames que ficaram fora da caixa. Assim, pela abertura feita na tampa da caixa, e girando os arames para baixo e para cima, assistíamos aos nossos filmes: Popeye, Pato Donald, O Fantasma, O Homem Borracha, Búfalo Bill, Mickey, Brucutu e tantos outros personagens. Patinete, que nós crianças, como auxílio dos mais velhos, fabricávamos com madeira de obra, “engates” feitos pelo serralheiro da esquina, cabo-de-vassoura, rolimãs e tiras de pneus que presos na parte traseira do patinete serviam de freios.

 

             

PERSONAGENS QUE UM DIA NOS ENCANTARAM E QUE AINDA POVOAM NOSSAS MENTES.

 

Mas, tinham outras brincadeiras que só crianças inventam para passar o tempo, quando já cansadas das brincadeiras de sempre. Às vezes, eu e Arizinho, nosso primo, ficávamos sentados no portão da rua olhando os carros passarem e assim surgiam brincadeiras. Fazíamos apostas mil: por exemplo: os carros com placa vermelha eram dele e os de placa amarela eram meus. Íamos contando para ver quem estava ganhando até se cansar e inventar outra brincadeira.

Uma brincadeira que adorávamos fazer era pegar, no borracheiro da esquina, uma calota velha de determinada marca de automóvel e fazer o seguinte: assim que passasse pelo nosso portão um carro que usasse aquele tipo de calota, a gente lançava perto dos pneus do automóvel a nossa calota, de modo tal que o motorista não percebesse. O motorista, entretanto, ao ouvir o barulho da “nossa calota” batendo nas pedras de paralelepípedos da rua e ver meninos correndo para pegá-las, pegá-las e sair correndo, nem pensava duas vezes: freava e corria atrás dos “moleques” para recuperar a calota do seu carro. Fingindo deixar-se apanhar, explicávamos que aquela calota era nossa, era nosso brinquedo e fazíamos questão de acompanhá-lo até o seu carro para mostrar-lhe que nenhuma calota desprendera-se da roda do seu automóvel. A cara deles? Imaginem!

Como ninguém na “Aldeia” possuía televisão naquela época, o rádio e o “cineminha” de graça no saguão da igreja velha de São Jorge - existente ainda hoje - eram outras formas de entretenimento para as crianças. Recordo que, diariamente, às 17 horas, saíamos correndo da escola para a casa da Nely para, no seu quarto e a  beira da sua cama, sentadinhos, junto a cabeceira onde ficava o seu pequeno rádio, branco, de madrepérola e apenas dois botões (ligar, aumentar e diminuir volume e trocar estações), ouvir as “Histórias do Tio Janjão”, depois o “Anjo” - espécie de radionovela e, por fim, ainda antes da "Voz do Brasil, escutar as histórias de “Jerônimo, o Herói do Sertão”, talvez, a rádio novela mais ouvida naqueles  tempos. Jerônimo era um “mocinho” que ao lado de Moleque Saci, seu fiel escudeiro, estava sempre em situações de risco pelo ideal de salvar o próximo e fazer justiça. Aninha, a doce amada de Jerônimo, estava sempre em perigo e Jerônimo sempre sob o risco das ciladas e tocaias que os “bandidos” lhe preparavam. Moleque Saci, vivia gritando: Cuidado Jerônimo! Cuidado Aninhaaa!

E, seguindo, gritarias, tiros e tropéis de cavalos, ali juntinho dos nossos ouvidos! Nossos corações disparavam, ficávamos tensos e nervosos torcendo para que nada de mal acontecesse aos nossos heróis, principalmente a Aninha. Ufa! Eu podia ver as cenas, os cavalos, as caras de mau dos bandidos, o Moleque Saci, negro, baixinho e forte, com um chapéu de aba larga, revolver na cintura. Podia ver Aninha, bela como as estrelas do cinema mudo, sempre de vestido branco rodado, cabelo negro e ondulado com penteado que dividia para os lados, presos por grampos de madrepérola. Podia ver Jerônimo, moreno, alto, cabelos negros e longos, forte, camisa escura de listra, manga comprida, com detalhe de couro nos punhos, revólveres nos coldres de couro, calça negra protegida com capa de couro, botas até o meio das pernas, adornadas por belas “esporas doiradas”, que, num toque, fazia disparar o seu bravo e inseparável corcel negro. Podia ver e via! A cada descrição dos personagens pelos rádio atores e atrizes, íamos formando em nossas mentes as imagens de cada personagem, de cada paisagem, de cada cilada, de cada fuga! Inimaginável hoje.

Era um mundo de sonhos e fantasias que as nossas mentes infantis e disponíveis criavam ao sabor das emoções que embrenhavam-se pelos nossos ouvidos e depositavam-se em nossos inocentes cérebros: “Quem passar pelo sertão / Vai ouvir alguém falar / do Jerônimo lutador / Que eu venho aqui cantar / Filho de Maria Homem nasceu / Serro Bravo foi seu berço natal / Entre tiros e tocais cresceu / Nessa luta pelo bem contra o mal.

 

"JERÔNIMO, O HEROI DO SERTÃO". AH! RÁDIO. SEMPRE PRESENTE EM NOSSAS VIDAS.

 

Essa é parte da trilha sonora de “Jerônimo, o Heroi do Sertão”, que a minha memória faz questão de preservar. Um dia, apareceu na “Aldeia” um Jerônimo de verdade. Era um sujeito alto, atlético, vistoso, que veio lá das bandas do Espírito Santo para encontrar a sua amada; a Maria, uma bela morena que era parente/empregada da Leny, irmã da Nely. Inocentemente, criança que era, fui olhar aquele “Jerônimo” que chegara. Meio assim como bicho-do-mato, como eram as crianças daquela época na presença de estranhos, furtivamente fiquei observando-o. É, tinha “cara de Jerônimo”, mas era branco. Era fortão, tinha uma certa pinta de mocinho mas... E os revólveres? E as botas? E o chicote? 

O Jerônimo da Maria definitivamente não “combinava” com o herói da minha infância. Pensava, naquela época, que “Jerônimo” só existia um: “O Herói do Sertão”. Nesse mesmo radinho da Nely, entre as “Histórias do Tio Janjão” e “O Anjo”, ouvia-se a “Oração da Ave "Maria”, às 6:00h, na narração fervorosa de Júlio Louzada, que nos remetia para os caminhos de Deus e seus princípios.

Inesquecíveis também os filmes mudos, às vezes “surdos” pois nem legendas tinham. Carlitos, O Gordo e o Magro, O Zorro, em preto e branco, com imagens tremidas e distorcidas, vistos na Igreja de São Jorge. Naquele nosso mundinho, a felicidade cabia numa parede pintada a cal onde a luz distorcida emanada do projetor do cinematógrafo lançava sobre ela todos os personagens dos nossos sonhos.Tente entrar num cinema antigo de uma cidadezinha onde o projetor seja do meado do século passado e veja um filme de “Carlitos” ou “O Rei de Bagdá”, tudo em preto e branco.

Tente, você vai ser envolvido pela magia da minha infância, mesmo assim não totalmente pois a sua mente já não é mais virgem de imagens cinematográficas. Não sendo possível, vá na locadora mais próxima da sua casa e peça: “Cinema Paradiso”. A emoção que este filme transmite está muito próxima da emoção que sentíamos quando crianças ao assistir esses filmes. E o que dizer do suspense que acometia os nossos corações antes da fita começar? Sentados naqueles banquinhos, sob a luz da lua e estrelas, nossos olhos arregalados e inquietos buscavam na tela qualquer sinal que indicasse o início do filme. Primeiro eram projetado números em série, depois imagens corridas da “fita”, depois uma pausa, depois novos ajustes no cinematógrafo e aí então começava a tocar uma música orquestrada, linda e inconfundível, que indicava que a “fita” ia de fato começar.

Três coisas, essencialmente, me emocionam muito ao lembrar dos filmes da minha infância: O fecho tremido de luz do cinematógrafo que conduziam as imagens até a tela; O som ou ruído de um projetor de filmes dos anos cinquenta do século passado e essa música que invariavelmente fazia a “abertura” das sessões de cineminha de São Jorge. Essa, prometo, vou descobrir. Mas nada, nada mesmo, superava o suspense, a espera pelo início do filme. Era tudo muito pouco, era tudo muito mágico para os nossos olhos desacostumados com o inusitado, com o que nos parecia magia. Ia esquecendo do velho pipoqueiro, suprema indelicadeza, que, às vezes, na “entrada” do nosso cineminha, se dignava a nos ceder algumas pipocas em troca de “nenhum” tostão.

 

FESTAS

 

Um pouco além das fronteiras da nossa “Aldeia”, ainda crianças, encontrávamos no Carnaval, nas festas juninas e de São Jorge, as alegrias externas que estas nos ofereciam. Existiam próximos de nossa “Aldeia” três Ranchos Carnavalescos: O “Decididos de Quintino”, cuja sede ficava a Rua Lemos Brito (rua onde nasceu e morou minha esposa Ilza e família que também foi uma espécie de “Aldeia”, pois, coincidentemente, agregava numa vila de casas), o “Aliados de Quintino”, que ficava a Rua Fazenda da Bica, próximo à estação do trem, e o “Aliança de Quintino” (uma dissidência do “Decididos de Quintino”) que tinha a sua sede na mesma Rua Clarimundo de Melo onde morávamos.

Os Ranchos eram agremiações carnavalescas que se caracterizavam pelas belas fantasias e esplendores (armações de arame revestidas de tecidos transparentes e brilhos, nas cores da agremiação, à semelhança das asas de borboletas e pássaros, de forma estilizada), que contavam um enredo através das suas alas e marchas-rancho bem lenta e saudosas. Exemplo de música (marcha-rancho) que bem representa as daquela época tocadas nos Ranchos são: “Pastorinha” e “Bandeira Branca”, sucessos de Carnavais, na voz de Dalva de Oliveira e até hoje sucesso nos bailes dos clubes e bandas desse nosso Brasil.

 

"...SAUDADE, DOR QUE DÓI DEMAIS..."

 

O nosso Rancho preferido era o "Decididos de Quintino", também o mais querido e famoso por ter conquistado vários campeonatos carnavalescos entre tantos Ranchos do Rio de Janeiro. Ver aqueles desfiles nas ruas Lemos Brito e Clarimundo de Melo, era para nós, crianças e também adultos, um espetáculo sem par. Tentar descrever aquele rio de passistas desfilando cadenciadamente e cantando suas marchas, que nos remetiam a saudades de alguma coisa pura e bela, sob poucas luzes captadas das residências e postes da Light e refletidas pelos esplendores, cetins e lantejoulas das fantasias de princesas, reis, soldados romanos e suas vistosas capas, espadas e dragões dourados, é para mim impossível.

As imagens de fantasias de cetins amarelo-ouro e esplendores lilás permanecem na minha mente como se as tivesse visto ontem. E o toque solene dos clarins e caixas de guerra? Indescritível! Getúlio, nosso irmão, tem o privilégio de dizer que foi um desses passistas que eu adorei ver na “passarela” das nossas ruas defendendo as cores do nosso “Decididos de Quintino”. Num daqueles carnavais, Getúlio fantasiou-se de soldado do “Dragões da Independência”, batalhão do exército que fazia a guarda de D. Pedro, Príncipe Regente, e que foi imortalizado no quadro de Vitor Meirelles que retratou o momento histórico da independência do Brasil.

Para mim, moleque sonhador, aquelas botas de canos longos, esporas doiradas, espada prateada com punho metálico em ouro, cinto de couro preto, calça e jaqueta brancas com dragonas em ouro, capa vermelha com detalhes em ouro, e capacete prateado , tipo romano, de cuja cobertura desciam fios vermelhos, eram mais que motivos para eu me sentir um verdadeiro “Dragão da Independência”.

Às vezes, furtivamente, pegava o capacete e a espada e frente ao espelho do guarda-vestidos da nossa casa encenava golpes e defesas contra os soldados inimigos. Alguns anos depois, por esses aprontos do destino, e sem querer, me tornei um “Dragão da Independência” de verdade! Pois é, o Exército me requisitou para este batalhão onde servi e tornei-me “Cavaleiro Combatente”, de verdade, com honras e méritos, como descrito no meu certificado de reservista.

 

DE MOLEQUE SONHADOR, À DRAGÃO DA INDEPENDÊNCIA.

 

Do carnaval me vem ainda mais forte a lembrança dos mascarados da época: morcegos, caveiras e diabos, invariavelmente. Aquela “coisa” vestida dos pés ao pescoço num macacão de cetim vermelho com rabo e tudo, luvas vermelhas e máscara vermelha elevando orelhas e sobrancelhas, mais a língua que se estendia por uns 40 centímetros da face, era o terror das crianças. Era o diabo!

Ficávamos escondidos atrás do portão a sua espreita e quando víamos um andando pela rua gritávamos por ele, esperávamos a sua reação e então, esbaforidos fugíamos, escalando os 65 degraus da escadaria da “Nossa Aldeia” e metíamos debaixo de nossas camas e lá ficávamos quietinhos, corações sobressaltados, não querendo e ao mesmo tempo querendo ficar frente a frente com o “Feioso”. Tinha um algo mais quando ele escondido nos surpreendia, abria sua imensa capa e emitia um som gutural que nos fazia gelar a espinha (gruuuuuuuuuuu). Era mais ou menos isso o som daqueles moleques desgraçados que depois de ver-nos sujos de pavor tiravam as suas máscaras e candidamente nos diziam: sou eu. riam e partiam para literalmente infernizar o carnaval de outras crianças da redondeza. Mas a gente gostava daquele desafio e ficava o dia todo nesse esconde-esconde, gritando por um morcego, correndo de uma caveira e se escondendo de um diabo fdp, o mais temido de todos. Nunca mais vi em qualquer lugar, em filmes antigos de carnavais ou reportagens, etc. Nenhuma imagem ou foto desses personagens, nem máscaras daquela época (exceto da caveira que se tornou “figurinha fácil”).  

Gostaria de encontrar (valha-me Deus) pelo menos a máscara do “tinhoso” para mostrar aos meus netos, hoje com idades próxima a minha naquela época (7, 8, 9 anos). Vingança? Claro que não! Apenas a sensação de ver nos olhos deles a mesma de desafio e medo que me fazia tremer diante do “Linguarudo”. Falando nele, Shirley (a Shirloca) nossa prima, vivia brincando de chamar o “verdadeiro” incentivando-o a aparecer: Diabooo, Diabooo, aparece! Aparece! Numa bela noite, Shirloca esbaforida, adentra pela cozinha da sua casa onde estávamos e branca, sem um pingo de sangue no rosto, apontava para a porta que dava acesso ao quintal escuro da casa, de onde viera. Tremia, tremia e quase sem fala dizia: Eu vi ele, eu vi ele! A partir daquela dia era um sufoco ter que atravessar aquele trecho do quintal a noite.

Quem se aventurava? A mim não restava escolha. Para brincar na casa dos primos a noite eu tinha que passar por ali e só Deus sabe quantas e quantas vezes eu fiz 20 metros em menos de um segundo! Nunca o vi na minha infância, apenas imaginava que fosse parecido com aqueles fdps. que apareciam no carnaval. Se o vi depois?  Claro!  Mas, não mais chifrudo e linguarudo, pelo contrário. Além dos Ranchos existiam também os blocos carnavalescos, pobres em fantasias, que como hoje tinham como enredos frequentemente as sátiras políticas, e de costumes. Dos blocos que desfilavam na pracinha do bairro eu gostava de ver a bateria e principalmente ouvir o “surdo” que fazia estremecer tudo ao seu redor. Nossos pais nada tinham de foliões, mas, pelo menos uma vez, me lembro de ter sido “vestido” de mulher por ordem do velho Anésio, como era bastante comum no carnaval. Criança que era não podia dizer não e sob silencioso protesto, puto da vida, desci com ele a escadaria da nossa “Aldeia” até a rua, mas dali não passei. Creio que ele percebeu o meu “desconforto” dentro de um modelo “Idalina” ou “Jesuína” e me liberou.

Hoje acho muito engraçado a cara de pau de muitos homens que se vestem de mulher para brincar o Carnaval mas, definitivamente, essa não é a minha praia. Os pais daquela época faziam questão de nos dar lições de virilidade, força para nos tornarmos homens de fato e de repente vestiam-nos de mulher? Paradoxo? Sei lá! Para mim era um baita sacanagem! O velho Anésio se foi me devendo esta, né pai? Tirando o “vestido”, o Carnaval pra mim sempre foi a maior e melhor das festas, até os dias de hoje. É a oportunidade que temos de dar vazão as nossas “fantasias”, de Reis, ou de Piratas ou de Jardineiros”, como diz a música, da terça-feira que se diz “gorda” até a quarta-feira, que diz “de cinzas”.

A “Festa de São Jorge”, realizada sempre no dia 23 de abril ou sábados e domingos próximos dessa data, na igreja do próprio onde fui batizado, ao lado da “Nossa Aldeia”, era para mim algo por um lado alegre e por outro triste. Explico: A festa de São Jorge trazia consigo os fogos de artifícios que multicoloriam o céu sobre a minha casa e faziam das noites paraísos de luzes e sóis que explodiam em diversas cores e direções e deixavam-se cair em fagulhas pelo nosso quintal. Criança dormia cedo. Lembro de acordar com o espocar dos fogos de artifícios, já tarde da noite ou de madrugada, ou com o toque de dos clarins, na alvorada, abrir a porta da casa, sair de fininho e, sozinho, ficar admirando aquele mundo fantástico que subia ao céu em forma de flechas ensandecidas, formando rastros dourados como de um de cometa e que desciam do céu suavemente espalhando estrelinhas de fogos de artifício entre as estrelas que de verdade ali naquele céu também se encontravam.

 

 

Essa magia acontecia aos meus olhos apenas uma vez por ano, talvez, por isso, a lembrança ainda tão permanente daqueles momentos. O cheiro de pólvora que pairava no ar e as flechas (bem maiores que eu) que ia buscar no meio da noite onde quer que caíssem e guardava como troféus, são recordações que com certeza jamais esquecerei. Havia também as bandas que tocavam na Igreja, os cânticos e hinos religiosos e os pregões dos leiloeiros que iniciavam ao cair da noite e adentravam pela madrugada. “Quem dá mais, gritava o leiloeiro! Dou-lhe uma, dou-lhe duas, dou-lhe três” e agradecia ao senhor ou senhora fulana de tal, o remate de um objeto qualquer ofertado por um membro da igreja e que por graça de São Jorge, alcançara no leilão um valor três vezes maior do que o valor de mercado.

Da varanda da casa da Nely era possível escutar os leiloeiros e o burburinho da festa. Era até possível se sentir participante da festa ainda que lá não estivesse presente, como nunca estive nessa época da infância. Meu pai era membro e Diácono da Igreja Congregacional do Encantado, para onde me levava sempre, e achava que o melhor caminho para o seu filho era a frieza dos cultos dominicais diurnos e noturnos, onde não me sentia confortável. Não gostava dos sermões duros e implacáveis do Pastor Raul que me amedrontavam e que a todo momento me lembrava que só em Jesus havia salvação; que era preciso levantar a mão e aceitá-lo incondicionalmente.

Muitas vezes chorei de emoção nos apelos do pastor Raul, brilhante na sua retórica, mas tinha a certeza que jamais cumpriria a promessa de ser um homem de Deus, pelo menos da forma como ele me foi apresentado. Criança, eu não entendia um Deus que não permitia que eu fosse a festa na Igreja onde fui batizado; não entendia um Deus que cobrasse de seus filhos a sua presença no único dia que eles tinham para descansar; não entendia por que as outras crianças riam, brincavam, eram felizes na festa de São Jorge e minha igreja era sempre liturgiosa e formal. Não entendia todas essas coisas. Achava o Deus do meu pai muito severo. No entanto, me sentia bem na hora da apresentação do Coral da Igreja, sempre impecável na sua vestimenta de tons pretos e vermelhos. Gostava de ouvir a harmonia de vozes, sob o comando do maestro Carlos Cunha.

Tinha orgulho de ouvir minhas irmãs Idalina e Jesuína cantando naquele Coral, que, se bem me lembro, era tido como um dos melhores das igrejas da Congregação. Outro momento que me sentia bem era no Natal: a Igreja, bem próximo ao púlpito, armava uma enorme árvore de Natal, decorava e colocava junto a sua base os brinquedos das crianças, filhos dos seus membros. Eram brinquedos bastante simples, pequenas lembranças do aniversário de Cristo, assim como as canções e hinos natalinos interpretados pelo famoso Coral da igreja. 

Uma coisa que detestava! A viagem de bonde de volta para casa. Saía-se da igreja em torno das onze horas da noite de domingo e ficava-se no ponto do bonde Piedade esperando-o sempre por um bom tempo. A friagem da noite e o vento que soprava dentro do bonde, todo aberto, esfriava até a minha alma. Descia-se do bonde na “curva” da Piedade e, já em torno de meia-noite, morto de sono e frio, acompanhava meu pai e irmãs na caminhada, a pé, da “curva” até a nossa casa, que ficava distante dali em torno de 1,5 quilômetros. Depois, era só subir os 65 degraus da “Nossa Aldeia”. De dia o passeio era até agradável, mas domingo, no silêncio da noite avançada, lúgubre e fria, era muito triste, angustiante e desconfortável. Por isso, talvez, até hoje, não goste de sair domingo, a parte da tarde e à noite. Sinto tristeza, em qualquer circunstância.

Costumo dizer que se eu morrer e o meu enterro for domingo à tardinha ou à noite, podem contar! Eu -  não -  vou!  Dessa igreja do meu pai, independente das coisas que não gostava na infância, guardei os valores ali pregados pelo brilhante pastor Raul. Esses valores, na ausência do meu pai, que morreu quando eu tinha dezessete anos, foram fundamentais na formação do meu caráter e me deram forças para suportar a sua falta e seguir adiante. “E amou Deus assim a todo mundo para que todo aquele que nele crê não pereça mas tenha a vida eterna" - João, Capítulo III, versículo XVI” -.

Esse capítulo da Bíblia ficava destacado (creio que ainda fica) na parede, atrás e acima do púlpito da igreja, de forma que qualquer membro, de qualquer ponto do templo, o visse e lesse constantemente. Por isso, o cito de cor aqui como lembrança do Deus da minha infância e que fui buscar quando mais precisei. Devo ao meu pai e ao pastor Raul muito da formação do meu caráter, muito da minha busca por um Deus que pudesse compreender. As festas juninas que frequentei na minha infância, aconteciam nos grupos escolares e na Rua da República, que fica no próprio bairro.

Ia acompanhado dos irmãos e primos mais velhos que ficavam responsáveis pela nossa guarda; minha e dos pequenos da turma. As festas juninas daquela época assemelhavam-se as festas de hoje organizadas somente em cidades do interior do estado e estados do Nordeste. No Rio, de hoje, perdeu-se quase tudo do folclore que gira em torno dessa festa, permanecendo apenas as bandeirinhas estiradas numa área aberta e a venda de bolos, cuscuz; pouca coisa a mais. A música, característica de festa junina raramente é ouvida, mesmo na sua época. Foi substituída pelo funk, batida eletrônica, samba e outras manifestações culturais que nada têm a haver com o sentido da festa.

Santo Antônio, São João e São Pedro, há muito não frequentam mais as suas festas no Rio. Escafederam-se, escandalizados com a falta de deferência de um povo que um dia os reverenciaram tanto, pelo menos na minha infância. Quem não lembra de ser "preso" por linda mocinha, ficar num cela de bambus e ser solto somente mediante a compra de X votos para a “sinhazinha”, candidata a princesa da festa? Quem não lembra de, entre passos de danças e versos afrancesados (anarriê!), se deliciar com o som da sanfona do “Zé da Onça” tocando: "O balão tá subindo / tá caindo a garoa / O céu tá tão lindo / e a noite tão boa / São João / São João / acende a fogueira no meu coração! Quem não lembra do fascínio exercido pelas mocinhas nos seus vestidos de rendas e fitas?

E os batons de tons super vermelhos e sensuais? E as pintinhas pintadas com lápis preto de sobrancelhas do ladinho da boca e que ajudavam a criar a figura de menina-moça, linda! Linda! Linda! E o laço de fita no cabelo? E o quentão? (Bebida preparada à base de cachaça). E a batata-doce assada na fogueira? E a poeira que subia do terreiro de chão batido, por conta do arrasta-pé (dança)? E os pedidos de casório aos santos casamenteiro sem forma de bilhetinhos cuidadosamente escritos pelas mocinhas e lançados à fogueira na crença de que assim se concretizariam? E os balões multicoloridos que a toda hora eram soltos sob o estourar de rojões e busca-pés? E do balão- beijo? Quem lembra? 

Era assim: um casal de adolescentes, combinava que aquele que visse um balão no céu, dava um beijinho na boca do outro e a partir daí danavam a procurar na escura imensidão do céu mais e mais balãozinho para trocar por beijinhos. As regras não eram muito claras, assim, com certa sutileza, era possível convencer a menininha que aquele balão grandão descoberto valeria, no mínimo, uns três beijinhos. Ou que foi muito difícil e trabalhoso enxergar, entre nuvens aquele balão pequenininho e semi-apagado. Esse poderia valer até cinco beijinhos.

Oh! tempo das doces brincadeiras, das doces inocências, por que passastes? As festas dos santos tinham (têm) pra mim um quê de leveza, romantismo, paixão e espiritualidade que até hoje me fascinam. Não sei bem como explicar a reação do meu coração quando ouço músicas juninas ou sinto o cheiro fogos. É um misto de alegria, saudade de alguma coisa que ficou no passado, que ficou na minha lembrança. Uma coisa me intriga até hoje. Os mais velhos contavam que no dia de São João e somente naquele dia era possível andar sobre as brasas da sua fogueira sem queimar as solas dos pés. Pensava muito nisso.

Às vezes, escondido dos mais velhos, ia, assim, devagarinho, aproximando meus pés da brasa, testando a verdade do que me foi dito. Não dava certo. A medida que mais aproximava meus pés das brasas, mais o calor subia até eles. Na prática a coisa comigo não funcionava e isso ao invés de tornar-me incrédulo, mais me levava para o terreno dos mistérios desse mundo. E me perguntava: mas se todo mundo fala isso e a vó Jesuína também, como pode não ser verdade? Fui até a vó Jesuína novamente e perguntei se ela já tinha andado sobre brasas da fogueira no dia de São João. A vó me disse: já andei, mas é preciso ter muita fé. Então era isso! Era preciso ter muita fé! Eu não tinha fé suficiente, eu não tinha fé de verdade, tinha medo! 

Hoje sei que é perfeitamente possível andar sobre as brasas de uma fogueira sem ter a sola dos pés queimadas. A fé é que nos faz suportar os sofrimentos, e, de tão crédulos, até, de fato, não senti-los. Bendito seja aquele que não duvida. Um lembrete: além da fé é preciso estar vivendo a crença. Os que viviam a crença de que somente naquele dia lhes eram, pelos desígnios dos céus, dadas a graça de andarem sobre elas. Essa fé tinha como alicerce um mundo mais romântico, menos competitivo. Havia mais tempo para explorá-la, havia mais tempo para conviver com Deus, para conviver com nossas crenças. Hoje, a toda hora somo testados. A toda hora somos levados a duvidar das crenças que habitavam a nossa infância e corações e mentes dos nossos antepassados. Tudo se tornou descartável.

Se já não suportas viver sob leis de um Deus que lhe cobra fidelidade, não se preocupe, na esquina há um templo cujo Deus lhe abrirá as portas e sob módicas prestações perdoará os seus pecados e, com certeza, não reparará no “cofrinho” da calça de cós baixo da irmã casada e mãe de filhos que, pelo contrário, ao som de um hino, em ritmo de samba, receberás a sagração ofertada pelo novo deus, pleno de benesses, e fingirás que acreditas de fato até que essa mentira se torne verdade em seu coração. Estas são as primeiras imagens da “Nossa Aldeia” que a minha memória manteve intactas durante esses meus sessenta anos de vida. Mas, há mais, há muito mais imagens, e eu vou assim, sem pressa, juntando os negativos desse tempo que se passou.

 

                                                                                                   Cleber Coelho.

 

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PROF. GILBERTO DA COSTA FERREIRA - HISTORIADOR, PESQUISADOR E ESCRITOR. 

cfgilberto@yahoo.com.br

 

 

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Família Coelho | 20/10/2024
Olá me chamo Jonas Cristiano Coelho da Silva, filho de Amaro Coelho da Silva, neto de Gabriel Coelho da Silva. Sou Pernambucano e resido em São Paulo.
Jonas Coelho

Gostaria de identificar mais parentes Coelho em Pernambuco e no Brasil | 04/08/2023
Olá me chamo Izabela Coelho Cintra, sou filha de Ynajá Coelho Cintra e neta de Yna Nilo Coelho. Resido em Jaboatão dos Guararapes/PE.
Izabela Coelho Cintra

Família Coelho | 20/04/2023
Busco informações sobre minha família, meu bisavô se chamava Pedro da Costa Coelho, será que somos parentes?
Paula

Vontade de saber por onde tem Coelho, mundo afora. | 23/03/2023
Sou Carlos Alberto Alves Coelho, filho de Aribert Silva Coelho, neto de Laurindo Muniz Coelho e neto de Leôncio Coelho. Vários outros da minha família também nasceram aqui na minha região de União Piauí.
Carlos Alberto Alves Coelho

Família Coelho | 18/03/2023
Olá, meu nome é Felipe Coelho Silva, filho de Silvana dos Santos Coelho e neto de João Batista Coelho. Sou também da família dos Coelhos.
Felipe Coelho Silva.

O desejo de uma cidadania. | 26/11/2021
Olá, me chamo Clarice Coelho, filha de Ana Paula Leal Coelho, Neta de Maria Abigair Castro Leal Coelho e Bisneta de Ana.... Bem, uma vez buscando a cidadania portuguesa, eu questionei a minha mãe da onde era o sobrenome Coelho. E ela me contou a seguinte história, que o pai do pai dela se envolveu com uma índia e que ele era de Portugal. Ela não sabe o nome, e eu realmente gostaria de transferir essa cidadania.
Clarice Coelho Maquine

Família única. | 02/09/2020
Olá, amigo e primo, bom dia. Sou de Salvador-BA e meus pais e avós são de Jacobina e região. Sempre guardei isso, os Coelhos são uma família só.
Reginaldo Coelho.

Esclarecimentos. | 11/08/2019
Caro amigo Alberto, boa noite. Estarei encaminhando seus questionamentos à pessoa de Cleber Coelho, meu amigo. Talvez ele possa ajudá-lo. Grato pela visita ao meu site. Grande abraço.
Gilberto da Costa Ferreira

Coelhos de Petrópolis | 11/08/2019
05/08/2019 Olá amigos, sou Alberto Coelho, filho de Carlos Alberto Coelho, neto de Arthur Coelho e bisneto de Jõao Coelho, e é até aí que consegui chegar. Sei que somos todos de Petrópolis e Sr. João Coelho do Vale das Videiras. Você poderia me dar uma luz sobre os Coelhos do Vale das Videiras?
Alberto Coelho

Família Coelho I 02/01/2018 | 09/01/2018
Sou Família Coelho e achei muito linda sua pesquisa. Será que somos parentes? Minha família é de Cunha-SP e Lagoinha-SP.
Silvânia Coelho

Nossa Aldeia | 17/03/2017 | 09/01/2018
Essa é parte da história das nossas famílias e minha própria, que consegui compilar, a partir da origem do sobrenome Coelho, Século X, até aos 10 anos da minha infância. Por falta de tempo e disposição não dei continuidade a essa missão que não se encerra aqui. Um dia, retomarei e, de alguma forma, tentarei contar a nossa odisseia até os dias atuais, claro, com as lembranças e passagens dos membros da nossa "Aldeia". Até lá!
Cleber José Coelho


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